Valor Econômico, 15/05/2020, Opinião, p. A12
A reforma das leis sobre juros no Brasil
Marcelo Trindade
A iniciativa de realizar sessões remotas de julgamento pelos tribunais brasileiros é importante, e não apenas para reduzir o atraso no exame do grande estoque de processos pendentes e assegurar o funcionamento das instituições democráticas e republicanas. A visibilidade dos debates judiciais pode também facilitar o seu acompanhamento pelo público, aumentando a percepção geral quanto à gravidade de muitos problemas relevantes da legislação brasileira, que se manifestam em processos judiciais ineficientes e custosos.
Veja-se o caso do Superior Tribunal de Justiça, que realizou no dia 28 de abril a primeira sessão de julgamento por videoconferência de sua história. Como noticiou o Valor (29/4/2020, p. E1), naquela sessão inaugural a Terceira Turma do STJ decidiu reduzir os juros contratados na aquisição de uma máquina fotográfica. Os juros foram reduzidos de 3,46% para 1% ao mês.
O conteúdo da decisão do STJ ainda não foi publicado, mas já é possível deduzir, pela notícia, que a disputa tem origem na grande confusão legislativa brasileira sobre o tema dos juros. Os tribunais, submetidos a diferentes e contraditórios comandos legais, decidem de maneira variada no tempo, contribuindo com a insegurança jurídica que envolve a matéria no país.
No Brasil vigoram, atualmente, dois regimes de juros convencionais. O primeiro é estabelecido pela Lei 4.595/64 e por leis especiais, e aplicável aos contratos em que ao menos uma das partes é instituição financeira ou outra entidade que atue sob a supervisão do Banco Central. O segundo regime se aplica aos contratos entre os demais agentes econômicos e é previsto no Código Civil, incidindo, ainda, proteções previstas pelo Código de Defesa do Consumidor, quando se trata de relações de consumo.
Esse sistema dualista é a principal fonte de controvérsia quanto ao tema dos juros no Brasil. Em resumo, para as instituições financeiras a taxa de juros é livre, sendo também permitido estabelecer juros compostos, isto é, que incidirão sobre os juros anteriores ainda não pagos, e dessa forma incorporados ao principal. Há exceções, mas não interessem ao debate maior.
Já nos demais contratos, que não envolvem instituição financeira - um empréstimo entre duas pessoas físicas ou jurídicas ou a compra e venda de um bem para pagamento a prazo, por exemplo -, o artigo 591 do Código Civil, combinado com o artigo 406 do mesmo Código, limita a taxa de juros àquela “que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. Atualmente essa taxa é a Selic, fixada pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central aproximadamente a cada 45 dias.
Além disso, nesse regime só é permitida a capitalização anual de juros, de modo que incidirão juros simples, apenas sobre o principal, e os juros vencidos somente poderão ser incorporados ao capital ao final de cada período de 12 meses.
A preocupação original que determinou a criação de um regime que restringe a liberdade quanto à contratação de juros foi a do combate à usura, como dizia o preâmbulo do Decreto 22.626, de 1933. Aquela norma introduziu as limitações gerais sobre juros em nosso país, derrogando o regime de ampla liberdade do Código Civil de 1916, e por isso ficou conhecido como Lei da Usura.
Hoje, entretanto, há mecanismos muito mais eficientes de combate à agiotagem, e o Estado tem ampla capacidade de impedir que tal crime, e o de exercício irregular de atividade privativa de instituição financeira, sejam praticados. Com o sistema bancário inteiramente informatizado e a difusão de mecanismos de combate à lavagem de dinheiro, a limitação estatal da liberdade dos agentes econômicos de estabelecer livremente a taxa de juros em seus contratos é inteiramente desproporcional ao benefício visado.
Por outro lado, as proteções do Código de Defesa do Consumidor, e mesmo as normas sobre lesão do próprio Código Civil, que permitem a revisão de contratos para reduzir prestações desproporcionais ou abusivas, viabilizam o controle de excessos que sejam cometidos contra pessoas com menor poder de barganha ou com informação limitada ou insuficiente.
Além da desproporcional restrição da liberdade, o principal ônus do sistema dualista de juros é a insegurança jurídica. Ela atinge até mesmo tomadores de títulos no mercado de capitais, como debêntures, quando a remuneração é impugnada por emissores em dificuldade financeira, o que não é raro. Para não falar no estímulo indireto à intermediação financeira, isto é, à presença de um banco na cadeia de captação de recursos, e aos custos daí decorrentes, já que as instituições financeiras estão livres para pactuar as taxas sem risco de contestação.
Há temas pontuais que também devem ser resolvidos, como a taxa de juros moratórios e o seu eventual limite. É necessária a revogação expressa de normas do Código Tributário Nacional e da Lei da Usura, já superadas tacitamente, mas que previam taxas altíssimas para os padrões atuais, de 6% a 12% ao ano, e continuam na memória de nossos magistrados, sendo frequentemente usadas em decisões judiciais. O modelo do Código Civil de 2002, de juros moratórios flutuantes na omissão das partes, é o mais justo e constitui o padrão internacional.
A principal urgência, contudo, é a unificação do regime legal dos juros, com a liberdade como regra geral, e proteções específicas contra abusos. Isso foi possível no sistema bancário, como provou a recente intervenção do Banco Central nas taxas do cheque especial. Aproveitar a quarentena para eliminar esse e outros custos do complexo sistema legal brasileiro, realizando micro reformas com grande potencial de impacto, pode ajudar na retomada da atividade econômica, quando finalmente chegar a hora.