O GLOBO, n 32.313, 25/01/2022. Política, p. 5
Para Universal, é incompatível ser cristão e votar na esquerda
Lucas Mathias
Texto no site da igreja associa campo político ao 'caos'; hoje ao lado de Bolsonaro, denominação já apoiou Lula e Dilma
No momento em que adversários do presidente Jair Bolsonaro na corrida eleitoral constroem estratégias para atrair o eleitorado evangélico, a Igreja Universal do Reino de Deus defendeu, em artigo publicado em seu site, que é incompatível ser cristão e votar em candidatos de esquerda. Segundo o texto, que não está assinado, os “esquerdistas se travestem de defensores do povo” e pretendem “repetir no Brasil fórmulas desgastadas e ineficazes —incluindo-se aí os regimes ditatoriais — e espalhar ainda mais o caos para que suas atitudes de desgoverno não sejam notadas”.
O artigo também atribui à esquerda a culpa pela polarização política atual, causadora de brigas que, segundo o texto, “fazem parte de uma estratégia maléfica para confundir ainda mais a população e angariar os votos dos incautos para os esquerdistas”.
Apesar de atritos recentes, como a crise envolvendo membros da denominação em Angola, a cúpula da Igreja Universal apoia Bolsonaro — na pesquisa Ipec de dezembro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aparece com 34% entre os evangélicos, empatado tecnicamente com o atual chefe do Executivo, que tem 33%. Além do petista, outros presidenciáveis, como Sergio Moro (Podemos), Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB), têm feito acenos ao segmento, que constitui uma das bases mais sólidas do atual chefe do Executivo.
GOVERNO E COSTUMES
A publicação traz ao fim uma frase do bispo Renato Cardoso, genro do bispo Edir Macedo, fundador da Universal: “Se você se diz cristão e ainda vota na esquerda, há apenas duas possibilidades: ou você não segue realmente os ensinamentos do cristianismo ou os segue e ainda não entendeu o que a esquerda é verdadeiramente”.
O distanciamento atual em relação à esquerda não é regra na história recente da Universal, cuja cúpula apoiou, além de Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Estruturado em tópicos, o texto assinala cinco pontos para distinguir o que o autor avalia serem as visões do cristianismo e da esquerda: família, formas de governar, crença, lados e unidade.
Nas relações familiares, a oposição se forma entre casais e lares em “harmonia” e uma suposta “destruição da rede familiar” promovida pela esquerda, que também atuaria contra a família ao se posicionar “contra o casamento convencional e incentivar questões como a liberdade do uso de droga”.
Ao tratar de modelos de governo, o texto associa a esquerda “às maiores ditaduras que oprimiram o povo” e cita China e Coreia do Norte como exemplos de perseguição ao cristianismo — não há menção a regimes ditatoriais de direita.
O artigo afirma ainda que a esquerda atua a favor dos conflitos — “quem instiga o ódio é o diabo”, assinala a publicação —, o que seria mais um elemento de incompatibilidade entre este espectro político e os cristãos.
Apesar da relação próxima com a família Bolsonaro — o vereador Carlos segue filiado ao Republicanos, partido ligado à igreja e pelo qual o senador Flávio também já passou —, já houve momentos de tensão entre governo e Universal ao longo dos três anos de mandato. No maior deles, a denominação cobrava uma interferência mais firme para resolver uma crise em Angola. Depois de 34 lideranças terem sido deportadas por ordem do governo angolano, em meio a uma investigação por lavagem de dinheiro, o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), chamou a postura da gestão brasileira de “descaso”. No mesmo tom, Renato Cardoso classificou a conduta de “omissão”.
Num aceno à Universal, Bolsonaro indicou o ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, bispo licenciado da igreja, para ser embaixador na África do Sul. A iniciativa, no entanto, se transformou em constrangimento: sem o aval do governo sul-africano, o nome de Crivella foi retirado após quase seis meses de espera.
HISTÓRICO DE RELAÇÕES POLÍTICAS
Lula: vice do PRB
Vice de Lula ao longo dos oito anos de mandato, José Alencar se filiou ao PMR em 2005, sedimentando a aliança do governo com a Igreja Universal (a sigla ainda se chamaria PRB antes de chegar ao nome atual, Republicanos). O então presidente e o bispo Edir Macedo mantinham boa relação, e o petista participou de dois momentos de crescimento da Record, também vinculada à igreja, no período: a inauguração da Record News, canal voltado para o noticiário, e a a inauguração de novos estúdios no RecNov, o centro de dramaturgia da emissora, então em franca expansão.
Dilma: presença em ministérios
O PRB esteve na coligação de Dilma Rousseff nas duas campanhas em que ela foi eleita: 2010 e 2014. O partido ampliou a participação em cargos do governo, a exemplo das presenças de Marcelo Crivella no Ministério da Pesca e de George Hilton na pasta do Esporte. Hilton, aliás, rompeu com o partido na ocasião do impeachment para permanecer no cargo — a legenda decidiu se posicionar a favor da saída da petista. Em um momento recheado de simbolismo, Dilma e ministros participaram da inauguração do Templo de Salomão, em São Paulo, a maior estrutura da Igreja Universal.
Bolsonaro: voto de Macedo
Em 2018, o PRB esteve formalmente na coligação do então candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, mas, ao longo da campanha, lideranças evangélicas manifestaram apoio a Jair Bolsonaro. No fim de setembro, ao responder a um comentário no Facebook, o bispo Edir Macedo disse que votaria em Bolsonaro. Em 2020, a relação ficou ainda mais estreita, depois que Carlos Bolsonaro e Flávio Bolsonaro se filiaram à sigla — o senador já deixou a legenda, que integra a base do governo e comanda o Ministério da Cidadania, com João Roma. O governo atendeu a anseios das igrejas, como perdão de dívidas, mas enfrentou uma crise com a Universal por causa de Angola.