Título: Democracia de mãos amarradas
Autor: Figueiredo, Wilson
Fonte: Jornal do Brasil, 19/05/2008, Opinião, p. A10

Dossiê? Dossiê? Dossiê (com entonação adequada) é um nome bonito, mas o povo não sabe o que é", observou o presidente Lula a um amigo oculto pelas circunstâncias. O presidente sabe, mas ¿ como na anedota ¿ não liga o nome à função. E oferece a chave para os bons entendedores se servirem.

Aos 12 anos, segundo Plutarco, o jovem Alexandre assistia ao lado do pai, o rei Felipe da Macedônia, à queda de todos os cavaleiros que montavam um cavalo que não permitia intimidades. Alexandre conseguiu do pai autorização para tentar e, tendo desvendado o código do cavalo, o alinhou de modo a não se assustar com a própria sombra no chão. Botou o pé no estribo, firmou-se na sela e entrou triunfalmente na História. O animal também, com o nome de Bucéfalo, dado por Alexandre ao recebê-lo do pai como presente.

Lula se assusta com sombras sem correr o risco de cair de cavalos que não monta, e administra à oposição doses cavalares de medo. Passa o tempo como imperador romano da última safra. Diverte-se ao jeito de Nero, enquanto as cabeças do governo e da oposição divergem bizantinamente em torno de um dossier (escrito à francesa) ou à brasileira, com chapeuzinho chinês, mas com a mesma pronúncia), sem concluírem o que se entende por dossiê ou por banco de dados camuflado. Em Brasília ou em Paris, dossiê tanto serve para designar espaldar (encosto alto de cadeira) como reunião de papéis e informações sobre pessoas, fatos ou situações. Nada a ver com banco de dados, como belicosamente insiste a Casa Civil.

A oposição vê com simpatia a safra de escândalos capazes de abalar a normalidade institucional. Mas sabe que as conseqüências se reservam para depois que a coerência bater as asas. Já o governo não faz as honras da casa ao dossiê tratado como reles banco de dados que o Banco Central nem reconhece. Com o encargo sujo de reunir informações cabeludas sobre governos passados, banco sem banqueiros e sem bancários não passa de tamborete à espera de falência.

Voltando à História propriamente dita, coube a Alexandre, mais adiante, já então adjetivado de Magno, desatar o nó górdio que esperava por ele e nunca mais disse a que veio. Aliás, não veio. Perdeu a razão de ser. Aposentou-se. No Brasil que nos coube, o nó que a democracia não consegue desatar é a medida provisória, falsa até no nome. O senador José Sarney, desde quando presidiu a esquiva transição para a democracia à brasileira, avisou que aquela barafunda constituinte ainda iria criar problemas e institucionalizar dores de cabeça presidenciais. Agora ele cobra reconhecimento (quase) com sorriso, ironia e juros. Fez há pouco a proposta de uma novena nacional em louvor de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, para que, pelo menos, se lembre de nós, mas na segunda pessoa do plural.

A democracia brasileira está de mãos atadas por um nó górdio que nada tem de provisório. Antes que o governo e sua ilustre oposição cheguem às vias de fato, o Supremo poderia advertir que o provisório abraço de afogados que reúne Executivo e Legislativo é historicamente indesatável. Mas lembrar também que a solução de Alexandre já se esgotou politicamente entre nós. Ele nem pestanejou ao desafio de desfazê-lo quando já era rei. Para ganhar tempo, e como não era questão teórica mas prática, desembainhou a espada e acabou com o nó górdio.

No caso das medidas provisórias, Lula assobia e chupa cana ao mesmo tempo, antes que outras tentações o assediem. Governo e oposição são os dois principais entes da democracia, que também não se repete nem como farsa. Marx não legou por fora soluções para os problemas da História. Deixou apenas perguntas sem resposta até hoje.