O GLOBO, n 32.315, 27/01/2022. Brasil, p. 10
114 PARA 1
Arthur Leal e Bianca Gomes
Pesquisa aponta abuso de força policial no país
Para cada policial assassinado em serviço no país em 2019, 114 civis foram mortos por arma de fogo e de forma intencional por agentes de segurança em serviço, segundo um estudo patrocinado pela Open Society Foundations divulgado ontem. A proporção é a maior dos países da América Latina e do Caribe analisados no trabalho. Para especialistas, o resultado reflete um abuso da força policial no Brasil, incentivado nos últimos anos por lideranças políticas, como o presidente Jair Bolsonaro.
O “Monitor do Uso da Força Letal na América Latina e no Caribe: 2022” fez uma comparação entre Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Jamaica, México, Trindade e Tobago e Venezuela. Em números absolutos, o levantamento apontou que o Brasil foi também o país em que os policiais mais mataram civis em 2019.
SÓ VENEZUELA É PIOR
Foram assassinadas por disparos intencionais de policiais 5.350 pessoas, contra 5.251 no ano anterior. Para Ignacio Cano, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México e um dos coordenadores do monitor, nunca houve um número tão alto no país.
De acordo com o estudo, 11,2% dos homicídios no país em 2019 foram provocados por policiais. Neste quesito, o Brasil só perde para a Venezuela, onde um em cada três homicídios foi causado por agentes do Estado. Os dois países superam o limite considerado aceitável por estudiosos, que é de 10%.
— Vemos claramente os efeitos do incentivo do uso da força por parte do governo federal e também de governos estaduais — avalia Cano. —O uso da força policial deve ser proporcional, o agente só deve usá-la quando a sua vida ou de terceiros estiver em perigo.
Os dados da pesquisa são do mesmo ano em que o governo Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto que instituía o excludente de ilicitude para agentes de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Pelo projeto, toda vez que um militar ou agente de uma GLO repelisse “injusta agressão, atual ou iminente”, não poderia ser preso em flagrante, pois estaria atuando em legítima defesa. A proposta não avançou no Legislativo. Mas continua a ser uma bandeira do presidente, que a defendeu na semana passada como forma de prevenir ocupações de terra.
CÂMERAS NA FARDA
Nos últimos anos, alguns estados passaram a adotar ações para coibir a violência policial. A principal delas, já implementada por Santa Catarina e São Paulo, é o uso de uma câmera acoplada na farda. Há também a utilização de GPS nos veículos policiais para controlar o deslocamento dos agentes.
Em dezembro, a Corregedoria da PM de São Paulo registrou o primeiro caso em que uma câmera acoplada ao uniforme comprovou a morte de uma pessoa desarmada em uma abordagem. O caso foi em São José dos Campos, em setembro.
As imagens mostraram que Vinícius David de Souza Castro Gomes foi baleado quando estava com as mãos na cabeça depois do carro em que estava com um amigo ter sido interceptado. Os dois eram suspeitos de assalto. O amigo também foi baleado, depois de ter a arma entregue, mas sobreviveu por estar com um colete à prova de balas.
Mesmo com as medidas de prevenção, casos de letalidade policial continuam ocorrendo. Em 28 de dezembro, o lutador Vitor Reis de Amorim, de 19 anos, foi morto enquanto estava em um bar com amigos em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Segundo o delegado Leonardo Macharet, que investiga o caso, o disparo saiu da arma de um policial militar. A PM diz que os agentes revidaram um ataque de traficantes.
—(O policial) Tem que fazer o trabalho? Tem. Se ele rendesse o meu filho, ele não estaria morto. Ele não ia achar nada demais. Ia até pedir desculpas — disse Vanelci Ferreira, pai de Amorim, no enterro.
Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Dennis Pacheco afirma que a proporção entre policiais e civis mortos por agentes de segurança contradiz a narrativa de que policiais matam pois enfrentam resistência de bandidos armados, como no caso de Amorim.
— Se matassem por resistência, teríamos um número muito diferente. O que encontramos é um número de civis mortos muito superior ao de policiais. Isso é reflexo de um modelo de policiamento que privilegia o uso da força de forma abusiva e sem qualquer limitação ou constrangimento — diz Pacheco, ressaltando que, em 2018, os policiais respondiam por 9,10% das mortes no Brasil. — São resultados muito ruins e que mostram que o Brasil está mal posicionado em relação ao controle das polícias. É um sinal de alerta no sentido de que estamos nas piores posições e caminhando para lugares mais sombrios.
REVOLTA NO PARAÍSO
Na semana passada, a letalidade policial provocou protestos em um destino turístico associado à paz: a Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Salviano Souza Conceição, de 63 anos, Ozanir Batista da Silva, de 46, Antônio da Cunha dos Santos, de 35, e Alan Pereira Soares, de 27, foram mortos pela Polícia Militar na Vila de São Jorge, durante uma ação para impedir o plantio de maconha.
Os policiais disseram que reagiram a tiros que foram disparados quando acharam a plantação e sete homens em uma chácara. “Diante da injusta agressão foi feito o revide, sendo quatro homens alvejados e três tendo evadido para uma mata”, afirmaram em relatório oficial, onde também disseram que cinco armas de fogo foram apreendidas.
Mas de acordo com a família de Antônio, quilombola conhecido na comunidade como Chico Kalunga, ele estava na propriedade vizinha, trabalhando em uma plantação de milho.
— Ele fazia todo tipo de serviço braçal. Roçar, capinar, qualquer coisa. Acho que ele estava trabalhando por R$ 150 a diária — conta Valdenira Rodrigues, 34 anos, cunhada de Chico Kalunga, que deixou dois filhos, de 13 e de 10 anos.
Amigos dos mortos dizem que as armas foram colocadas no local pelos policiais.
— A história toda da polícia é uma farsa. Não houve confronto, e a plantação de maconha que havia ali era de pouquíssimos pés, não era produto para tráfico de drogas — conta Murillo Aleixo, de 33 anos, produtor cultural local, para quem a plantação foi incendiada como forma de impedir uma perícia do confronto.
O caso é investigado pela Polícia Civil. Os PMs envolvidos foram afastados.