Título: A história se repete
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2005, Opinião, p. A10

Revoltado, como todos os cidadãos de bem deste país, com o brutal e covarde assassinato da freira Dorothy Stang, o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dom Tomás Balduíno, vaticinou: a presença militar no Pará é bem-vinda neste momento, mas não resolve a situação perturbadora dos conflitos fundiários que incomodamente se perpetuam na região. ''As Forças Armadas são um paliativo, um cataplasma na ferida. É preciso ir à raiz do problema, que é o conflito de terra, a ausência do Estado e a falta de infra-estrutura'', afirmou dom Balduíno, comentando a decisão do Planalto de enviar o Exército - com apoio de aviões da FAB - para o Pará. A reclamação é justificável. Primeiro: o governo tem falhado na condução do processo de reforma da estrutura agrária do país. Mais: os órgãos oficiais responsáveis, como Incra e Ibama, não dispõem de condições suficientes para realizar as tarefas que lhes cabem. Não à toa a CPT pediu que o governo cumpra o artigo 51 das Disposições Transitórias da Constituição, que determina a revisão das doações, vendas e concessões de terras públicas no Brasil. Depois do assassinato de Stang, uma autoridade de Brasília afirmou, por exemplo, que o governo fará um levantamento da grilagem em terras do Pará, a fim de retomá-las e dar-lhes uso legal. Engano. É improvável que, com a atual estrutura, tal ação se concretize de fato.

No Brasil rural - e na Região Amazônica, em especial - a ausência do Estado irriga um campo sem lei onde a violência criminal golpeia implacavelmente a alma nacional. (Uma agressão, sublinhe-se, que não pertence mais somente às regiões agrestes, mas atinge as periferias urbanas.) E o mais grave: a impunidade tornou-se tão comum quanto a violência decorrente da leniência das autoridades, da lentidão da Justiça e da conivência das polícias com criminosos.

Não é demais afirmar: na morte da missionária pacifista, todos erraram: governo federal, governo estadual, Justiça e polícias. Nenhuma autoridade motivou-se a agir, mesmo diante dos sucessivos alertas emitidos pela própria freira, pelo Ministério Público, por sindicalistas e trabalhadores rurais. A inércia e a impunidade se têm repetido ano a ano, assim como os mesmos alertas e as mesmas palavras indignadas proferidos há vários anos diante de episódios semelhantes.

Para usar o exemplo do Pará, tem-se uma lista extensa a citar: aos 19 trabalhadores sem-terra assassinados em abril de 1996, somem-se, por exemplo, o padre Ezechiele Ramiro e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, João Canuto (1985); o padre Jósimo (1986); o deputado estadual Paulo Fonteles (1987); o deputado estadual João Carlos Batista (1988); os sindicalistas Brás de Oliveira e Ronan Boaventura (1990); o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, Expedito de Souza (1991). Desnecessário dizer mais. São inúteis outras referências para saber que muitos desses crimes estão impunes; ou que outras condenações só surgiram 15 anos depois. Em Anapu, três líderes rurais receberam novas ameaças. Espera-se agora que a apuração em curso não só encontre os assassinos, como investigue as autoridades que ignoraram os alertas.

Em 1988, foi a pressão internacional, combinada com a presença firme do então oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva, que ajudou a apressar o julgamento dos assassinos do líder seringueiro Chico Mendes - um dos mais rápidos da Justiça brasileira. Dorothy morreu da mesma realidade. Lula agiu rápido, mas errou ao não comparecer ao enterro da irmã. Com tal gesto, pelo menos demonstraria simbolicamente que algo pode mudar no reino da anarquia fundiária e ecológica da Amazônia.