Correio Braziliense, n. 22628, 03/03/2025. Brasil, p. 6
A rede invisível da pedofilia
Vanilson Oliveira
O crescimento alarmante dos crimes digitais envolvendo abuso infantil tem evidenciado fragilidades na legislação brasileira e exposto lacunas no enfrentamento desse tipo de crime. Especialistas alertam que a falta de uma política de Estado estruturada para a proteção da infância compromete a eficácia das ações de prevenção e combate à violência sexual infantil no país. Atualmente, tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) o Projeto de Lei 4299/20, de autoria da ex-deputada Rejane Dias (PT-PI), que propõe a inclusão do crime de pedofilia no Código Penal. A proposta prevê punição para quem constranger, corromper ou expor crianças e adolescentes de forma inapropriada, além de aumentar a pena para esses delitos, endurecendo as consequências para os agressores.
Em 2024, a Polícia Federal (PF) realizou 1.003 operações para combater crimes de abuso infantil, com 367 prisões em flagrante, 92 vítimas resgatadas e 1.124 mandados de busca e apreensão cumpridos, em todo o país. Plataformas como o Telegram se tornaram territórios férteis para redes criminosas que compartilham imagens e vídeos ilegais sob anonimato, dificultando a atuação das autoridades. De acordo com dados da Childhood Brasil, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), que atua na proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, 85% dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes são cometidos por conhecidos, na maioria dos casos, dentro de casa.
A cada hora, oito crianças ou adolescentes são vítimas de violência sexual no Brasil, mas apenas 8,5% dos casos denunciados. "A internet, quando não monitorada, pode normalizar comportamentos de risco. O problema não está apenas no criminoso que aborda crianças, mas também na disseminação de conteúdos hipersexualizados, que afetam a percepção infantil sobre limites e proteção", alerta Itamar Gonçalves, superintendente de Advocacy da Childhood Brasil.
Mesmo com um volume crescente de denúncias, a fiscalização ainda é limitada. Gonçalves enfatiza que as big techs precisam ser responsabilizadas. "O Telegram, por exemplo, tem sido um dos principais meios de disseminação de material de abuso infantil. Não podemos permitir que esses espaços fiquem sem fiscalização. As plataformas precisam atuar ativamente na remoção desse conteúdo e colaborar com as investigações", afirma.
O mapeamento de 2024 da PF mostra que o estado de São Paulo lidera as estatísticas de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, com 222 operações e 90 prisões em flagrante, seguido pelo Paraná, com 105 operações e 40 flagrantes. O Rio Grande do Sul teve 68 operações, com 23 pessoas presas em flagrante. Em estados como Pará, Amazonas, Maranhão e Mato Grosso, a situação é igualmente crítica. Durante as operações do ano passado, crianças também foram resgatadas de situações de exploração sexual em cidades pequenas e áreas isoladas, revelando que a violência contra menores não está restrita a grandes centros urbanos.
Mesmo com essas operações, o índice de responsabilização dos criminosos ainda é baixo. Segundo Itamar Gonçalves, uma das principais falhas do sistema brasileiro é a falta de uma política nacional integrada de enfrentamento à violência sexual infantil. "Temos leis, temos campanhas, mas não temos uma política de Estado para prevenção da violência infantil. Precisamos de um plano nacional consolidado, envolvendo educação, saúde, assistência social e segurança pública", aponta ele.
O superintendente de Advocacy da Childhood Brasil também alerta para o despreparo do sistema ao lidar com crianças vítimas de abuso. A Lei da Escuta Protegida, sancionada em 2017 para garantir que menores prestem depoimento apenas uma vez, não é aplicada de maneira eficiente na maioria dos estados. "Em muitos lugares, a criança tem que contar sua história 10 vezes ou mais. E, pior, em alguns casos, a acareação ainda acontece na frente do abusador", denuncia o especialista.
No estado do Amazonas, a Lei nº 7.346/2025 cria um Cadastro Estadual de Pedófilos, uma tentativa de monitoramento contínuo de criminosos condenados. Mas especialistas alertam que, além da criação de um bancos de dados, é preciso garantir que o Brasil tenha uma política de Estado voltada à proteção da infância. "Apenas endurecer as penas não basta; é preciso agir preventivamente e garantir um sistema de apoio eficiente para proteger as vítimas e responsabilizar os agressores", afirma Itamar.
Ele diz ainda que, além da revitimização durante o processo judicial, há um outro problema estrutural que é a falta de profissionais capacitados para identificar e atender crianças vítimas de abuso. "Professores, médicos e assistentes sociais não têm o preparo adequado para identificar sinais de abuso. A gente criou, junto com o Unicef e o Canal Futura, uma série para treinar esses profissionais, porque esse é um dos grandes gargalos no enfrentamento deste crime", explica.
Impacto psicológico
Para a psicóloga infantil Lorena Lopes, especialista em transtornos do desenvolvimento, o abuso sexual infantil deixa marcas profundas no desenvolvimento emocional das vítimas. Ela destaca que os primeiros sinais podem ser perceptíveis no comportamento da criança e que "os pais precisam estar atentos a mudanças comportamentais". "Crianças que antes dormiam bem podem passar a ter medo do escuro. Alguém extrovertido pode se tornar introspectivo ou agressivo. São sinais que não devem ser ignorados", alerta.
Além disso, Lopes reforça que a educação infantil sobre o próprio corpo é essencial para prevenir casos de abuso. "Muitos pais evitam falar sobre o assunto por tabu, mas isso só aumenta o risco. A criança precisa entender que existem limites físicos e que ninguém, nem mesmo familiares próximos, pode ultrapassá-los", comenta.
Ainda de acordo com a psicóloga, o silêncio e o medo são os principais obstáculos para que as crianças denunciem os agressores, já que muitas delas são ameaçadas para que não revelem o abuso, e esse ciclo de silêncio e impunidade perpetua a violência. "Toda criança dá sinais de que algo errado está acontecendo com elas. São mudanças comportamentais, marcas de agressão, agressividades, medo. E é papel dos pais perceberem seus filhos", enfatiza.