Correio Braziliense, n. 22629, 04/03/2025. Política, p. 2

Expectativa de fazer justiça a outras vítimas
Fernanda Strickland
Renata Giraldi


O Oscar de Melhor Filme Internacional para Ainda estou aqui provoca uma série de expectativas, sobretudo para quem aguarda a justiça para as vítimas dos crimes cometidos na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). É o caso da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), recriada em 2024, mas que sofre com a ausência de um orçamento próprio e adequado para o que se destina, além de entraves que dificultam certas ações.

Com a missão de reconhecer formalmente as mortes desse período e localizar os corpos das vítimas, o colegiado tem de desempenhar um trabalho árduo e dispendioso, atualmente concentrado no Cemitério Dom Bosco, chamado de Perus, em São Paulo, além de buscas de corpos no Araguaia e em cemitérios públicos do Rio de Janeiro e do Recife.

Em entrevista ao Correio, a presidente da comissão Eugênia Gonzaga diz estar confiante de que a atenção criada pelo longa em torno do período militar, com os desaparecimentos, as torturas e os assassinatos, mais recursos sejam investidos na causa.

"Além da possibilidade do reconhecimento formal, a comissão tem a obrigação de fazer a busca de corpos nos casos em que há indícios de onde estão localizados. É um trabalho muito difícil, muito caro, que envolve muitos profissionais, e a comissão nunca teve orçamento próprio para isso", afirma.

Desde sua criação, o colegiado depende da estrutura do Ministério dos Direitos Humanos, pasta que também sofre com a limitação financeira. Sem verbas específicas para contratações de profissionais, como peritos, e financiamentos de pesquisas, a comissão apelou para o Congresso Nacional. "(Como) esse orçamento não veio do Executivo, então fomos buscar via emendas parlamentares", explica. Porém ela diz que, ainda assim, faltam recursos.

Apesar das dificuldades, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos comemora avanços significativos. Em 2018, por exemplo, foram identificados dois desaparecidos políticos entre as ossadas de Perus, cemitério clandestino na zona norte de São Paulo. "Parece um número pequeno, mas não é. Na América Latina, em 15 anos, foram os dois únicos casos de identificação, porque é um trabalho realmente muito difícil, muito complexo, mas tem caminhos, é possível fazer", ressalta Eugênia Gonzaga.

Outros entraves

De acordo com a presidente, os entraves ao trabalho da comissão não se limitam à falta de recursos, atingem também resistências às investigações e uma burocracia arraigada e vinculada ao passado ditatorial. Segundo Eugênia, até em casos de grande repercussão, como o do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido entre 20 e 22 de janeiro de 1971, surgem empecilhos para tentar impedir as apurações.

"Até hoje, mesmo no caso do Rubens Paiva, tão rumoroso, você ainda tem informações e contrainformações em que fica muito difícil dizer exatamente o que aconteceu. Não há uma versão final e oficial sobre centenas de casos de militantes políticos", lamenta. "A luta para localizar e identificar os desaparecidos políticos segue como uma questão pendente na história do Brasil. Enquanto a estrutura da comissão permanecer frágil, famílias continuarão sem respostas, e o país seguirá em dívida com sua própria memória."

No domingo, o Ministério Público Federal divulgou um vídeo em que detalha as investigações sobre os crimes cometidos durante a ditadura civil-militar, com destaque para Paiva. A partir da denúncia, apresentada em 2014, cinco agentes de segurança são investigados — apenas dois deles estão vivos. Há, ainda, outros processos referentes ao período da ditadura. O tema está suspenso porque aguarda interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) para definir se esses crimes são protegidos pela Lei da Anistia ou se serão excluídos. Para o Ministério Público, esses atos têm caráter "permanente", portanto, não podem ser abarcados pela lei.

Eugênia reclama da ausência de transparência sobre a abertura para os documentos militares e a resistência em reconhecer crimes da ditadura, daí a expectativa dela em torno dos efeitos do filme Ainda estou aqui na vida prática da comissão, uma vez que o país passou a se interessar pelo tema e cobrar respostas. "É possível fazer", frisa.

Frase

"Até hoje, mesmo no caso do Rubens Paiva, tão rumoroso, você ainda tem informações e contrainformações em que fica muito difícil dizer exatamente o que aconteceu. Não há uma versão final e oficial sobre centenas de casos de militantes políticos”

Eugênia Gonzaga, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos