Correio Braziliense, n. 22629, 05/03/2025. Politica, p. 3

“Ditadura nunca mais”
Fernanda Strickland


"Ditadura Nunca Mais!” É o que planejava dizer, em português, Walter Salles ao discursar no palco da maior premiação de cinema do planeta. Em uma noite que foi histórica para o Brasil, a fala corajosa e contundente do diretor ao ganhar o Oscar por Ainda estou aqui permaneceu oculta aos olhos do mundo. Vazado um dia depois, o texto preparado para a cerimônia reafirma a resistência da arte contra regimes autoritários e presta homenagem a mulheres que enfrentaram a brutalidade da ditadura militar.

O discurso de Salles não era apenas um agradecimento à Academia de Hollywood. Era uma declaração de princípios. “Fiquei de óculos sem ter o que ler. Começava agradecendo o cinema brasileiro, mas também queria agradecer ao cinema latino-americano. Perdi isso na largada, também perdi outras coisas que eu queria lembrar”, afirmou em coletiva de imprensa. A obra “reforça a trajetória de Eunice. Fala da importância da resistência, fala do quanto nos ensinou, na verdade, a lutar sem perder essa capacidade de sorrir”, contou, explicando o teor da mensagem que havia escrito para a premiação.

O longa mostrou como no início da década de 1970, o Brasil enfrentava o endurecimento da ditadura militar. O diretor dedicou o prêmio à memória de Eunice Paiva, mulher que perdeu o marido, o deputado cassado e militante político Rubens Paiva, nas engrenagens da repressão militar no Brasil. Eunice não se calou diante da violência do regime. Lutou para criar seus filhos e para que a memória do marido não fosse apagada.

O tom do discurso era de resistência, não de resignação. “Governos autoritários surgem e desaparecem no esgoto da história. E livros, canções e filmes ficam conosco...”, diria Salles, em um dos trechos. Ainda que essas palavras não tenham sido ouvidas naquela noite do Oscar, seu conteúdo ecoa como um lembrete: a arte é uma trincheira contra o autoritarismo, e a memória histórica é um escudo contra a repetição dos erros do passado.

O texto preparado pelo diretor, contudo, não se restringia ao passado. Ele alertava para o crescimento de novas formas de autoritarismo, lembrando que regimes repressivos não são apenas capítulos encerrados da história, mas ameaças que continuam a assombrar a democracia. “Estamos vivendo algo que eu não esperei ver tão cedo. É um processo de fragilização crescente da democracia que está se acelerando cada vez mais. A única coisa que posso atestar é o quanto o filme, que fala de uma ditadura militar, se tornou tão próximo de quem o viu”, disse em Los Angeles, no dia seguinte à premiação.

Ele destacou também que ouviu de americanos que a trama retratada em seu filme e o atual cenário político nos Estados Unidos apresentam semelhanças. “Eu diria que não é só aqui (nos EUA). De uma certa forma, isso ecoa o perigo autoritário que hoje grassa no mundo todo”, emendou. “Viva a democracia”, é como ele planejava encerrar sua fala.

Logo após a vitória do Brasil no Oscar, a primeira-dama, Janja Lula, ressaltou nas redes sociais o feito de um filme sobre os tristes e violentos tempos da ditadura militar ganhar o maior prêmio do cinema mundial. “Em tempos de tanto ódio e autoritarismo, Ainda estou aqui vem para nos lembrar de momentos que não queremos viver nunca mais”, escreveu.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que o Oscar vem em boa hora para o Brasil. “Celebramos, neste mês, 40 anos de nossa redemocratização! Em 15 de março de 1985, o então vice-presidente José Sarney tomava posse, encerrando duas décadas de ditadura no país”, enfatizou no X (antigo Twitter). “O filme, de maneira sensível, retrata os horrores do regime e suas consequências para a vida dos brasileiros. Eunice Paiva, interpretada com brilhantismo pela Fernanda Torres, é símbolo de resiliência e serve para nos lembrar que a luta pela democracia tem que ser constante”, completou.

A deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), por sua vez, pontuou que o Oscar é uma forma de homenagear as vítimas da ditadura. “O Brasil está com vocês, Fernanda e Walter. Democracia sempre, sem anistia!”

Convite a Brasília

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva convidou a atriz Fernanda Torres e o diretor Walter Salles para um encontro em celebração ao Oscar conquistado pela produção na categoria de Melhor Filme Internacional.

A reunião, prevista para ocorrer em Brasília, ainda não tem data definida e está sendo organizada por auxiliares do chefe do Executivo em conjunto com representantes do longa nacional. Além de Salles e Torres, outros atores e membros da equipe de produção também são esperados na capital.

Na semana passada, Lula e a primeira-dama, Janja, realizaram uma exibição de Ainda estou aqui na sala de projeção do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, com a presença de ministros, congressistas e familiares de Rubens Paiva.