Título: Castigo para quem pensa
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2005, Opiniões, p. A13

Permito-me assumir o artigo do entranhável amigo Marcelo Barros, monge que une mística e política, celebração e apoio ao MST. É teólogo refinado e um dos que melhor dialoga com as religiões afro-brasileiras, sendo ele mesmo um de seus descendentes. Mas principalmente é um homem livre e amante da verdade, tendo sofrido perseguições por isso. Aqui segue seu artigo com pequenos cortes para caber em minha coluna. ''A opinião pública mundial se comove com a fragilidade do papa que, por causa de uma gripe mais forte, foi obrigado a permanecer, vários dias, internado no hospital. Enquanto o papa idoso e doente parece carregar nos ombros o peso da cristandade, a Congregação Romana da Doutrina da Fé, presidida pelo cardeal Ratzinger, aquele que silenciou Leonardo Boff, torna pública, em nome do papa, mais uma condenação de teólogos. Trata-se já da 140ª condenação de teólogos neste atual pontificado. Desta vez, a vítima é o jesuíta norte-americano Roger Haight, professor de teologia histórica e sitemática da Weston Jesuit School of Theology (Cambridge-Massachusetts) e ex-presidente da Sociedade Teológica Católica da América. O motivo da condenação é o livro Jesus, Symbol of God (1999), traduzido no Brasil, pelas Paulinas, com o título: Jesus, símbolo de Deus (2003).

Nesta obra, a partir dos dados da grande tradição e dos resultados mais seguros dos estudos bíblicos atuais o padre Haight desenvolve uma teologia sobre Jesus Cristo que aponta pistas para um aprofundamento de uma Cristologia ecumênica e em diálogo com outras religiões neste início de século. Não nega a tradição mais profunda do cristianismo sobre Jesus, mas vai além das formulações de sempre. A mim este livro me pareceu extremamente equilibrado e cuidadoso. Como é um livro de teologia e destinado a um público mais especializado, a condenação da Congregação Romana atinge mesmo a própria pesquisa teológica. A conseqüência disso é intimidar os teólogos e teólogas para que não digam claramente o que estão pesquisando porque sob o atual Pontificado continua sendo proibido pensar e expressar o seu pensamento.

Na década de 80, um bispo brasileiro acusou Frei Carlos Mesters, nosso melhor biblista, de fazer uma leitura bíblica que ele julgava tendenciosa e desequilibrada. Como também fazia o mesmo tipo de trabalho bíblico, me senti, em consciência, obrigado a publicar um artigo intitulado ''Eu me acuso''. Ali, eu deixava claro que tudo o que diziam de Frei Carlos podiam também dizer de mim e eu não achava honesto deixar que ele sofresse sozinho as conseqüências do seu compromisso de devolver a Bíblia às comunidades mais pobres. Agora, deparo com a condenação de um livro que me ajudou muito no diálogo respeitoso com outros caminhos espirituais. Sinto-me obrigado a me sentir também condenado junto com ele.

Fevereiro é um mês profícuo na história das condenações. Em 17 de fevereiro de 1600, o papa Clemente VIII mandou queimar na fogueira o frade dominicano e filósofo Giordano Bruno. Este foi um homem livre que contestava qualquer dogmatismo. Por isso, foi preso e, durante seis anos, deveu responder como réu em um processo cruel que incluiu torturas. Com o corpo pendurado de cabeça para baixo durante horas e sob ameaça de lhe furarem os olhos, aceitou renunciar a algumas de suas doutrinas e retratar-se oralmente e por escrito. Mas, como não abjurou a todo o seu pensamento e não se dobrou à prepotência do tribunal, foi queimado vivo. Antes de morrer, Giordano Bruno declarou a seus juízes: ''Vocês estão com mais medo da sentença que proferiram, do que eu, que por ela serei supliciado''. O inquisidor chefe que condenou Giordano Bruno foi o cardeal Roberto Belarmino, a quem o papa Pio XI proclamou santo e ''doutor da Igreja''.

Agora, a notícia da atual condenação do padre Haight é divulgada no mesmo dia em que, no Brasil, junto com outras Igrejas, a Igreja Católica lança a Campanha Ecumênica da Fraternidade sobre Solidariedade e Paz. Esta campanha foi lançada com um pronunciamento do papa propondo a todos que ponham em prática uma verdadeira cultura de paz e da não violência''.