Título: Imoral, leviana e insensata
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2005, Opiniões, p. A11
Justiça seja feita: o novo presidente de Câmara, deputado Severino Cavalcanti, não enganou a ninguém. Tudo que prometeu como candidato, respaldado pela sua coerência de parlamentar veterano, começou a ser cumprir a risca nos três primeiros dias de exercício do terceiro cargo na hierarquia do Executivo: aumento imediato dos subsídios dos 513 deputados, obviamente acompanhado pelos dos 81 senadores, manutenção da intocável madraçaria dos três meses de férias para os que se sacrificam à exaustão na semana de dois a três dias úteis e demais paparicos de mordomias e vantagens que satisfaçam a gula do baixo clero. O cravo da originalidade espetado no buquê dos regalos foi reservado para ser exibido na primeira entrevista presidencial: a prorrogação por dois anos do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o sacrifício da reeleição. Com a mágica severina da coincidência dos mandatos em todos os níveis. o eleitorado seria poupado de campanhas e eleições a cada dois anos.
No deslumbramento compreensível do salto de uma biografia modesta para a cúpula do poder, o presidente perdeu as estribeiras e expôs-se na leviandade de uma proposta insensata, imoral, inviável e pelo do mais rançoso viés antidemocrático. Além de escamotear o verdadeiro alcance e os matreiros objetivos do golpe fantasiado de simples remendo na Constituição. Para pousar no aconchego do campo forrado de mordomias, a indecorosa prorrogação por dois anos do mandato de Lula arrasta a cauda das prorrogações dos mandatos de governadores, senadores, deputados federais e estaduais, na farra da liquidação institucional.
A maluqueira deverá ser barrada pelo bom senso que costuma prevalecer quando cutucado pelo instinto de sobrevivência. E pela reação do presidente Lula à barganha que sepultaria os dois anos do seu mandato e o direito de disputar a reeleição na esterqueira de uma trapaça.
Envolver o maior número de parceiros na manobra de esperteza marota é uma velha tática: enquanto a indignação sacrifica o boi de piranha, passa a boiada gorda do aumento dos subsídios, das mordomias, dos benefício e acrescenta zeros à conta bancária dos eleitos para um dos melhores empregos do mundo.
Para justificar o injustificável, o venerando presidente Severino alega que o parlamentar não consegue sobreviver com o miserável subsídio de R$ 12.847, por ele qualificado como salário de motorista. Não é bem assim. No ano parlamentar de nove meses de semana nanica, cada felizardo embolsa quinze subsídios, noves fora o que pinga em dobro nas convocações extraordinárias. Já aí chegamos a garantidos R$ 16.058. A seco, não seria muito. O cacho das pitombas é farto e variado: R$ 35 mil de verba dos gabinetes privativos de suas excelências, nichos do nepotismo; a escandalosa verba indenizatória de R$ 15 mil para o ressarcimento das despesas do fim de semana; R$ 4.278 para a miudeza das contas dos telefones e correio; R$ 3 mil de auxílio moradia para quem desdenha o apartamento funcional porque não mora em Brasília, lá só vai de quando em vez. E mais as quatro passagens mensais da capital aos seus estados.
A soma de todas as parcelas e demais penduricalhos fura o teto dos R$ 100 mil mensais, a mesquinha remuneração para tão estafante labuta e que tanto enternece a generosidade do bondoso coração do presidente Severino.
O ensaio de tímida resistência nas áreas minoritárias do Congresso não deve ir muito longe. A Câmara que elegeu por 300 votos o presidente de biografia conhecida transferiu o controle da Casa ao baixo clero. Especulações, entre resmungos e recriminações dos derrotados na cata dos culpados são um exercício que distrai e embala as mágoas, mas inútil. Os partidos abriram falência com o troca-troca de legenda e a quebra das regras do jogo.
Claro, os novos donos do plenário não exibem o muque de bancada com maioria absoluta e folga de dezenas de votos. Mas, a mancha cinzenta e muda que cochicha e fofoca na penumbra das últimas filas do plenário, descobriu a sua força e empossou o seu guru na presidência. Nenhum acordo, nenhuma articulação emplacará sem o seu apoio e os seus votos. Nas aperturas governistas e nas manobras oposicionistas sempre haverá um amplo espaço para abrigar os novos senhores do condomínio.
Basta que a proposta acene com vantagens e lucros. Para iniciar a conversa, o caminho é o gabinete do presidente, o chefe da turma que ganhou a parada.