O GLOBO, n 32.320, 01/02/2022. Política, p. 4
FORA DO ESCOPO
André de Souza, Mariana Muniz e Julia Lindner
PF isenta Bolsonaro de prevaricação e diz que ele não tem dever legal de informar suspeitas
Relatório da Polícia Federal (PF) concluiu que o presidente Jair Bolsonaro não pode ser enquadrado por crime de prevaricação — deixar de agir — quando recebeu denúncia de suspeita de fraude na compra da vacina indiana Covaxin. A CPI da Covid havia proposto o indiciamento de Bolsonaro por esse crime e integrantes da comissão reagiram ao entendimento da PF no caso.
O delegado William Tito Schuman Marinho, autor do relatório, destacou que, entre os deveres funcionais previstos em lei que devem ser observados pelo presidente, não há um que possa enquadrá-lo. Assim, mesmo que Bolsonaro tenha deixado de agir após tomar conhecimento de supostas irregularidades, a conduta “se aproximaria mais de uma ausência do cumprimento de um dever cívico, mas não de um desvio de dever funcional”.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que foi vice-presidente da CPI, anunciou que vai pedir a convocação do ministro da Justiça, Anderson Torres, e do diretor geral da PF, Paulo Maiurino. Renan Calheiros (MDB-AL), que foi o relator da comissão no Senado, chamou o documento de “esdrúxulo”. No texto enviado à ministra Rosa Weber, relatora do inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal (STF), a PF também disse não ser necessário tomar o depoimento do presidente.
O advogado criminalista Celso Vilardi, professor da FGV São Paulo, avaliou que não há elementos para comprovar o crime de prevaricação, mas discordou do argumento do delegado da PF.
— Isso é muito discutível do ponto de vista jurídico, porque o presidente da República, quando toma conhecimento de um ilícito, em tese, eu acho que sim ele deve comunicar outras instâncias do Estado, como a Polícia Federal —disse Vilardi ao GLOBO.
As denúncias sobre a Covaxin foram levantadas pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e o irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda. Eles relataram que avisaram Bolsonaro em uma reunião no dia 20 de março do ano passado sobre suspeitas de irregularidades na compra do imunizante, desenvolvido pelo laboratório indiano Bharat Biotech e negociada no Brasil pela empresa Precisa Medicamentos. Os dois prestaram depoimento na CPI. O servidor disse, por exemplo, que houve pressão dentro da pasta pela liberação da vacina, a mais cara a ter negócio fechado. Após as investigações da CPI, o contrato acabou sendo suspenso pelo governo. O caso levou à instauração de um inquérito no STF.
SEM PRODUÇÃO DE PROVAS
O delegado concluiu que há duas versões opostas sobre o caso: a de que o governo tomou providências para apurar as irregularidades, e a de que não agiu. Por outro lado, não foi possível produzir provas para atestar qual é a verdadeira. O delegado reconheceu que Bolsonaro não acionou a PF naquele momento, mas relatos de ex-integrantes do Ministério da Saúde apontam que a pasta foi comunicada pelo presidente para averiguar a denúncia: “Não é aceitável, face à impossibilidade de produção de prova concreta sobre tal circunstância, optar por uma das versões.”
Integrantes da CPI da Covid que fazem oposição ao governo reagiram no Twitter. Randolfe escreveu: “Não bastasse desmoralizar as instituições, agora Bolsonaro esculhamba a Polícia Federal. Precisamos tirar esse maloqueiro da Presidência esse ano! Vamos pedir a convocação do Ministro da Justiça e do diretor da PF para prestar esclarecimentos no Senado.”
Renan também contestou a conclusão da Polícia Federal: “Um delegado da PF subverteu a Lei ao afirmar que não é dever funcional do Presidente comunicar crimes. Os irmãos Miranda mostraram provas contra Bolsonaro por prevaricação na vacina da Covaxin. Esdrúxulo: o delegado confirma o crime, mas isenta a obrigação de agir de Bolsonaro.”
Alessandro Vieira (Cidadania-ES), que integrou CPI, e Fabiano Contarato (PT-ES), que não era membro da comissão, mas participava das reuniões, também contestaram o relatório. Os dois já foram delegados da Polícia Civil.
Entre os aliados de Bolsonaro, o tom foi outro. Para o senador Marcos Rogério (DEM-RO), que integrou a CPI, houve espetacularização dos trabalhos da comissão:
— Na CPI trataram (o caso) como um grande escândalo, mas eram acusações vazias, sem provas.
No relatório, o delegado informou que tomou várias providências. Solicitou e recebeu dos órgãos de controle cópias de procedimentos de fiscalização do contrato. Também foi feita uma perícia no WhatsApp do deputado Luís Miranda. Recebeu ainda cópias de depoimentos prestados na CPI e ouviu sete pessoas, entre elas Luis Miranda e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.