O Estado de S. Paulo, n. 48020, 08/04/2025. Política, p. A8
Beneficiada por atos de Lula, entidade obtém R$ 710 milhões em contratos
André Shalders
Vinícius Valfré
Gustavo Côrtes
Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) foi beneficiada por decretos presidenciais. “Taxas de administração” devem render pelo menos R$ 41 milhões.
No terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), uma entidade internacional que ofereceu cargo à primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, e é próxima de quadros do PT multiplicou o próprio espaço na Esplanada. Beneficiada por dois decretos assinados por Lula, a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) fechou 21 contratos e acordos no valor de R$ 710 milhões com 19 órgãos no atual governo.
Responsável por alguns dos principais eventos da atual gestão, como a COP-30, em Belém (PA), e a Cúpula do G-20, no ano passado, a OEI pode embolsar cerca de R$ 42 milhões com taxas de administração, mostram documentos obtidos pelo Estadão. Só por esses dois eventos, a entidade ficará com R$ 30,6 milhões.
A taxa de administração em contratos como o da OEI com o governo foi elevada de 5% para até 10% por um decreto assinado por Lula em março de 2024. Uma outra decisão presidencial, de setembro passado, permitiu à OEI contratar empresas para execução dos acordos, sem licitação. O decreto também acabou com a necessidade de aval da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Itamaraty. Graças ao normativo de Lula, basta notificar a ABC.
A OEI se apresenta como “a maior organização multilateral de cooperação entre os países ibero-americanos de língua espanhola”. Trata-se de uma entidade internacional de direito público que atua no Brasil há duas décadas, desde o primeiro governo Lula, com eventos, projetos sociais, consultorias e ações educativas. Mas foi na atual gestão que a presença e os ganhos diretos dela alcançaram patamares inéditos.
As parcerias são concentradas em pastas e órgãos controlados pelo PT, como a Casa Civil, a Secretaria-Geral da Presidência, a Empresa Brasil de Comunicação e os Ministérios da Educação e da Igualdade Racial. Dos R$ 710 milhões em contratos, R$ 629 milhões (quase 90%) estão sob o guarda-chuva de ministros e dirigentes petistas.
Um levantamento realizado pela reportagem em 1.700 páginas de processos administrativos, bases orçamentárias e extratos de acordos técnicos identificou a extensão completa da atuação da OEI dentro do governo. A publicidade dos contratos celebrados não segue a mesma regra de transparência que a dos demais atos da administração pública. Parte dos documentos solicitados por meio da Lei de Acesso à Informação foi negada.
SEM LICITAÇÃO. Em todo o governo de Jair Bolsonaro (PL), a OEI fechou R$ 78,9 milhões em contratos de acordos de cooperação. Em dois anos de Lula 3, o governo já transferiu R$ 197,9 milhões dos R$ 710 milhões celebrados. Os contratos são fechados sem licitação. Enquanto entidade privada internacional, a OEI não precisa seguir a Lei de Licitações brasileira.
A organização também goza de condições especiais na relação com órgãos fiscalizadores nacionais. O acordo em que o Brasil estabeleceu relação formal com a OEI, de 2004, determina que a sede da entidade no País, situada em Brasília, só pode ser alvo de autoridades mediante autorização de sua direção. A sede da entidade está submetida a regras parecidas com as aplicadas às embaixadas de países estrangeiros.
A OEI entrou em evidência por causa do contrato com a Secretaria Extraordinária da COP-30, subordinada à Casa Civil. A pasta repassará R$ 478 milhões para o órgão preparar a conferência climática que ocorrerá em Belém (PA), em novembro. O ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), indeferiu, na última terça-feira, um pedido da oposição para suspender o contrato.
Entretanto, as discussões sobre o protagonismo da OEI não têm abrangido o alcance da entidade no governo nem os valores que a organização cobra em cada contrato.
Do montante previsto para a COP-30, 5% serão recebidos a título de “taxa de administração”, o equivalente a R$ 22,7 milhões, que irão diretamente para o caixa da entidade. Em uma nota técnica da Casa Civil, o governo afirma textualmente que a celebração do acordo com essa taxa não visa “vantajosidade ( sic) financeira”, mas “provimento de insumos técnicos que permitam aportar conhecimento necessário ao desenvolvimento de capacidades”.
Em todos os demais processos aos quais a reportagem teve acesso, a fatia cobrada pelo organismo internacional foi maior, de 8%. Assim, o valor direcionado diretamente para o caixa da OEI desde 2023 pode chegar a mais de R$ 42 milhões, se contabilizados também os contratos que o governo não disponibilizou. Desse total, a reportagem obteve, via Lei de Acesso, documentos que comprovam o recebimento de R$ 33,8 milhões.
A maior parte dos acordos com a OEI diz respeito ao cerimonial e à logística da COP-30 e da reunião da cúpula do G20 – realizada em novembro do ano passado, no Rio – ou a projetos paralelos a esses eventos.
Mas a atuação da organização é mais ampla e também abrange consultorias em educação básica, cursos de aperfeiçoamento para servidores públicos e projetos sociais. Apesar da “vitrine” da COP-30, os tentáculos da OEI não se limitam a acordos firmados no primeiro escalão do governo, diretamente com o comando de ministérios.
Há contratos com órgãos menores como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário; a EBC; o Banco da Amazônia e a Companhia das Docas do Rio de Janeiro – que somam R$ 9,5 milhões.
Em setembro de 2024, a Secretaria-Geral da Presidência da República (SG-PR) firmou um projeto de cooperação técnica internacional com a OEI ao custo de R$ 10 milhões para os cofres da União. O governo também ampliou outra modalidade de repasses à entidade internacional, o regime de “contribuições voluntárias”. A SG-PR doou R$ 14 milhões nessa modalidade para “fortalecimento de processos participativos na elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas para o aprimoramento da democracia participativa”. O Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empr e s a de Pequeno Port e (Memp), mais R$ 49 milhões, e o Ministério da Educação (MEC), outros R$ 35 milhões.
LEIS E ‘REGRAS VIGENTES’. Em nota, o Memp disse que a contribuição à OEI foi feita em rubrica específica, com autorização do Congresso. A Secretaria-Geral da Presidência frisou que a cooperação com a OEI estava amparada por uma lei de 2023. A SGPR também disse que a “taxa de administração prevista no instrumento seguiu as regras vigentes no momento da pactuação”, mas sem afirmar de quanto foi.
O MEC disse que os R$ 35 milhões repassados à OEI serão usados em “ações de assistência técnica a programas e políticas do MEC, tais como o Programa Pé-de-Meia, Escola em Tempo Integral, Compromisso Nacional Criança Alfabetizada”. A contribuição foi autorizada em lei, frisou o MEC.
Já a Casa Civil, da qual faz parte a Secretaria Extraordinária da COP30, disse que o valor de R$ 22,7 milhões a ser cobrado pela entidade é baseado na estimativa de custos, ou seja, este é o montante máximo. O valor final será definido após apurados todos os custos.
A OEI afirmou que o número de projetos de cooperação internacional tocados pela entidade varia ao longo dos anos, “de acordo com as mudanças nos governos”. “Isso está diretamente relacionado à quantidade de políticas públicas em andamento, que se beneficiam do apoio de organismos internacionais e de sua expertise”. A entidade ressaltou também que as taxas cobradas são similares às de outras entidades internacionais, e que a entidade não visa “auferir lucros ou benefícios próprios”. •