Título: O Supremo vai aos índios
Autor: Dallari, Dalmo
Fonte: Jornal do Brasil, 24/05/2008, Opinião, p. A9

Três Ministros do Supremo Tribunal Federal, que neste momento têm a responsabilidade de decidir sobre a validade do decreto federal que homologou a demarcação da reserva indígena Raposa/ Serra do Sol, situada no Estado de Roraima, resolveram ir até o local, para decidir com mais conhecimento dos fatos. Isso é, em princípio, muito positivo, mas é indispensável que eles vejam além da paisagem física e não se deixem enganar ou influenciar por informantes maliciosos, interessados na expulsão dos índios para tirarem proveito econômico ou político. Várias etnias indígenas vivem na região há séculos e os atuais ocupantes somam perto de 50 mil brasileiros índios, que dependem da permanência na área para sobreviver.

Apesar da demarcação realizada com obediência a todos os preceitos legais, tendo por base informações históricas e um minucioso laudo antropológico, elaborado sob a direção de um eminente antropólogo, profundo conhecedor de costumes indígenas, a reserva foi invadida por ricos e violentos exploradores do agronegócio, que se apoderaram de extensa parcela da área indígena e ali fizeram uma plantação de arroz.

Denunciada a invasão ilegal da área, que, como dispõe a Constituição, é de propriedade da União, mas de ocupação indígena exclusiva e permanente, na condição de usufrutuários, os invasores montaram uma operação de guerra, usando homens armados e explosivos para danificar pontes e obstruir caminhos, montando um aparato de guerra para resistir pela força à Polícia Federal, encarregada de expulsar os invasores e garantir a propriedade da União.

Alegando ser prejudicial à economia do Estado o respeito à ocupação indígena, o governador de Roraima, em aliança com um deputado federal e apoiado por um general do Exército, opõe-se ao cumprimento do que dispõe a Constituição da República, tentando justificar-se com alegações que, do ponto de vista jurídico, são absurdas, além de serem contrárias à história e aos fatos.

Alega o governador que ao fazer a demarcação a União usurpou terras do Estado de Roraima e isso seria contra o princípio federativo. Para se ter evidente o absurdo dessa afirmação, basta lembrar que o Estado de Roraima foi criado pela conversão de antigo Território Federal em Estado, por disposição constante do artigo 14 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988.

No corpo da Constituição de 1988, no artigo 20, inciso XI, ficou estabelecido que são bens da União "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios", dispondo o artigo 231 que "são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

Assim, no ato de criação do Estado já ficou estabelecido que aquelas terras pertenciam à União e que aos índios ficava assegurado o direito de ocupação. Qualquer conhecedor dos índios brasileiros sabe que a ocupação indígena não se limita à aldeia ou à maloca e aos túmulos dos antepassados, mas abrange todo o entorno situado entre as aldeias, onde o índio obtém o necessário para sua alimentação, suas moradias, a preparação das ferramentas e armas indispensáveis para a caça, a pesca e a defesa, o fabrico de seu vestuário típico e dos apetrechos indispensáveis para a realização de seus rituais e de sua celebrações tradicionais.

Por isso a demarcação foi da área contínua, pois a ocupação é contínua, e não de "ilhas" isoladas, como se o índio obtivesse dentro da maloca tudo de que necessita para sobreviver. Acima das considerações econômicas e políticas estão as normas constitucionais, cuja guarda é a principal atribuição do Supremo Tribunal Federal.