Título: As ditaduras da selva
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 21/02/2005, País, p. A3

Em áreas de conflito na Amazônia, grileiros e madeireiros ilegais são os donos do poder e mandam matar indesejáveis

Não é comum associar a imagem das favelas cariocas, entregues ao domínio dos traficantes, às imensas áreas do interior brasileiro transformadas em pequenas ditaduras, com as populações oprimidas pelos xerifes do lugar, que fazem a sua lei e exterminam os indesejáveis. Pois é exatamente essa a imagem que estudiosos e especialistas em conflitos no campo usam para descrever regiões como a de Anapu, no Pará, onde a missionária americana Dorothy Stang foi assassinada na semana passada. Se nos conflitos relacionados à reforma agrária, há sempre a expectativa de que o estado venha a legitimar situações de fato, nas áreas onde predomina o choque entre grileiros e posseiros - como é comum na Região Amazônica - esse horizonte não existe:

- Lá vigora a barbárie. O estado de direito não funciona. Grileiros e madeireiros ilegais, com ações como a que resultou na morte da irmã Dorothy, estão sinalizando para um fato: não querem a chegada da civilização. Imperam sobre áreas imensas - que costumam devastar - dominam todos os setores do poder local e já têm estrutura política para representá-los na democracia formal que vigora no restante do país. É preciso uma operação de guerra para mostrar a eles que o país tem leis - alerta o geógrafo Bernardo Mançano, professor da Universidade Estadual Paulista.

Os números do extermínio ligado aos conflitos no campo mostram que o problema é nacional, embora esteja mais concentrado em estados como o Pará. Entre 1985 e 2003 houve 1.357 assassinatos - só no Pará foram 509 - e nenhum mandante foi preso - apesar de uma minoria ter sido processada. A conta foi feita por Klester Cavalcanti, que durante cinco anos pesquisou os conflitos e publicou um livro sobre o assunto (Viúvas da Terra - Morte e Impunidade nos Rincões do Brasil, Editora Planeta).

- Um traço comum nesse tipo de crime é que os assassinos fazem questão de deixar provas da sua crueldade, para intimidar quem pensar em combatê-los e deixar a comunidade em torno sempre assustada - conta o jornalista Klester, que já foi vencedor de um prêmio de melhor reportagem ambiental da América do Sul, conferido pela agência Reuters e pela ONG União Mundial para a Natureza.

Há também um outro ponto em comum entre os que analisam os conflitos e a prática do extermínio: só uma política prioritária e corajosa do governo federal, que envolva uma vultosa soma de recursos, será eficiente para enfrentar a situação. Além disso, os mecanismos de reforma do Judiciário terão de abranger fórmulas para acabar com a extrema lentidão e ineficácia dos processos, que estimulam a impunidade nas áreas de conflito. A permanência do Exército sem prazo definido na região é um sinal de preocupação do governo, mas está longe de resolver a questão, de acordo com esta visão comum.

- Para criar reservas extrativistas de fato protegidas é preciso usar muita gente para uma fiscalização eficiente e gastar muito dinheiro. Com a morte da irmã Dorothy, o Brasil está sendo desafiado pelo mundo, que exige ação firme e, sobretudo, duradoura. O governo tem anunciado iniciativas mas a implantação é tímida. O sangue e a impunidade na floresta significam a exploração dos recursos da maneira mais insustentável possível - diz o diretor de campanhas do Greenpeace, Marcelo Furtado.

Klester Cavalcanti chama a atenção para o malogro de tentativas anteriores de criação de reservas, justamente pela falta de fiscalização adequada, o que gerou novas invasões e crises. Antônio Márcio Buainain, especialista em conflitos agrários, alerta para o arcabouço jurídico anacrônico, com uma legislação atrasada, que também contribui para perpetuar o clima de insegurança nessas regiões.

Em relação à reforma agrária, o economista - professor da Unicamp - afirma que o ideal é o governo atuar com uma proposta preventiva, evitando ao máximo a eclosão de conflitos, em vez de manter a atual conduta, que é atuar a posteriori.

- O conflito funciona para quem invade terras assim como funcionou para os madeireiros descontentes com o governo, que interditaram a Rodovia 163, que liga Cuiabá a Santarém. Quando o governo resolve ceder depois desse tipo de ação dá um claro sinal de que o conflito vale a pena.

Visão diferente tem o professor Bernardo Mançano:

- O fato é que o governo não consegue uma ação preventiva. Só as ocupações têm sido eficientes para provocar uma ação do estado. Por isso, 90% dos assentamentos são resultantes de ocupações - rebate.

Os conflitos na Amazônia têm origem diversa, explicam Buainain e Mançano. Enquanto nos embates relacionados à reforma agrária, agricultores lutam para conquistar terras que estariam desocupadas ou inexploradas, na Amazônia são os grileiros que tomam conta de terras ocupadas há muitos anos por posseiros.

Em sua maioria, fazem a exploração predatória de madeira, em áreas que ficam devastadas. Cerca de 80% desta exploração é realizada de forma ilegal na região, de acordo com os levantamentos mais recentes.

Beatriz David, professora de economia agrária da Uerj, que fez levantamentos na região de Anapu - área onde atuava Dorothy Stang - diz que a área começou a ser mais intensamente colonizada a partir dos anos 80, entrando posteriormente num período de esvaziamento. Depois, com a infraestrutura proporcionada pela exploração de minério em Carajás, intensificou-se a exploração da floresta e tomaram maior vulto os conflitos entre madeireiros e antigos colonos.

- A situação é equivalente à de uma favela dominada pelos traficantes. Só que ocorre em áreas isoladas, distantes, que não têm sido devidamente observadas pelo governo. Existe cooptação de políticos pelos que agem fora da lei e a Justiça funciona mal - comenta Beatriz.

O economista Antônio Márcio Buainain analisa outros aspectos da questão legal:

- O estado democrático tem leis e instituições que precisam ser respeitadas. A democracia é um valor universal que não se questiona. Para tirar o grileiro de uma propriedade que não lhe pertence, tenho, antes, de provar a falsidade dos títulos na Justiça. E isso pode durar anos. Este é um exemplo das dificuldades no setor.

O professor da Unicamp lembra que, apesar de tudo, houve alguns avanços legais nos últimos anos como o mecanismo do rito sumário, que permite a entrada numa área desapropriada, antes de ser resolvido o litígio judicial.

- Esse mecanismo tem sido pouco usado, porque a máquina está operando mal. Neste governo, encheram o Incra de militantes políticos e os resultados, até agora, são pífios, quanto aos assentamentos - critica.

Além do Sul do Pará, Buainain cita entre os maiores focos de tensão no país o Pontal do Paranapanema, no Oeste de São Paulo, a Zona da Mata, em Pernambuco, áreas da Bahia, como a da região de Porto Seguro, além dos focos no Mato Grosso do Sul (região de Dourados) e no Rio Grande do Sul (região de Cruz Alta).