Título: Voto(s) de desconfiança
Autor: Aurélio Wander Bastos
Fonte: Jornal do Brasil, 21/02/2005, Outras Opiniões, p. A11

A eleição de Severino Cavalcanti, num quadro de desarticulação interna do PT, como todo acontecimento político relevante, provoca uma cascata de interpretações e conclusões. Algumas traduzem verdades circunstanciais, outras, verdades efetivas e muitas não têm maior significado analítico. Todas no seu conjunto, todavia, são indicativos que houve uma desagregação do quadro partidário, sinalizando para um novo pacto político.

A compreensão destas flutuações conclusivas contribuem para a elaboração de razoáveis diagnósticos sobre o futuro político do Brasil, que, muitas vezes, traduzindo o processo de evolução institucional, sugerem prognósticos de cautela. Na sua dimensão de relevância, este específico caso, permite, não apenas, conclusões de natureza conjuntural, como também, de natureza estrutural, não só nos seus efeitos históricos subseqüentes, como também antecedentes.

A história do país, mostra que, nenhum fato, desta relevância, passa desapercebido pela vida política, nem muito menos, consegue ser soterrado por discursos, falaciosas palavras ou negociações de acomodação. A compreensão destes fatos, não apenas nas suas dimensões conjunturais, mas também institucionais, exigem a imediata percepção de sua profundidade para desequilibrar a tênue base parlamentar do governo.

Na verdade, os regimes presidencialistas, principalmente o modelo brasileiro, que tem um forte viés autoritário, diferentemente do parlamentarismo, não possui mecanismos institucionais que permitam rápidas acomodações políticas, de certa forma viabilizando rupturas nas forças aliadas que dão sustentação ao governo com conseqüências de curto ou médio prazo sobre os programas presidenciais. O anteprojeto da Constituição Brasileira de 1988, na mesma linha das sugestões constitucionais da Comissão presidida por Afonso Arinos, procurava incentivar práticas essencialmente parlamentaristas, no entanto, as tradições presidenciais brasileiras interromperam a modernização das relações entre os poderes executivo e legislativo, inviabilizando os propósitos parlamentaristas, que permitiriam uma convivência harmônica entre a Presidência da República e o Parlamento, como força decisiva na aprovação dos programas de governo, evitando que movimentos eleitorais internos adquirissem a força parlamentarista do ''voto de desconfiança''.

A eleição isolada e monolítica de Severino Cavalcanti, para a presidência da Câmara dos Deputados, fato imprevisível na história brasileira, onde os presidentes parlamentares sempre estiveram sintonizados com o governo central, diferentemente da eleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado, é um forte indicador da ausência de mecanismos institucionais, que resguardem o equilíbrio da funcionalidade política, que permitindo que situações conjunturais resvalem para crises institucionais. Esta é a mais forte dificuldade do presidencialismo brasileiro, onde o executivo minoritário, na ausência de regras casuístas, como faziam os regimentos de passado recente, sucumbe sempre frente à resistência parlamentar.

As razões da eleição de Severino Cavalcanti, até agora colocadas pela imprensa, concentram-se na desarticulação interna do Partido e da base de Governo, aliás, numa sucessão de erros que partem da expulsão e afastamento de parlamentares, da derrota da proposta de reeleição do Presidente da Câmara, das divergências sobre a indicação de Virgílio Guimarães, como candidato partidário, atropelado por um candidato oficial, titular histórico de posições ideológicas muito visíveis, mas elas denunciam, também, que o cerne da crise está na execução do programa de governo.

As medidas provisórias, de origem parlamentarista, que remanesce lamentavelmente numa estrutura constitucional presidencialista, tornaram-se, na verdade, o prenuncio de graves dificuldades no governo, como efetivo questionamento dos excessos do Programa de Governo, que podem romper os limites sociais e empresariais suportáveis. As medidas provisórias, pela sua utilização sucessiva, diga-se, também pelos governos anteriores, tem sido o instrumento de viabilização das reformas constitucionais, fazendo do Executivo um poder governante isolado e poderoso que transformou o parlamento num poder de homologação, cerceando sua capacidade formulativa e evitando que os tantos seguimentos da sociedade opinassem sobre os propósitos e limites do programa de governo.

A derrota do Partido do Governo poderá ter sérias implicações institucionais, se não forem incentivadas novas aberturas de entendimento e repensadas algumas fórmulas excessivas postas pelas medidas regulamentares, principalmente se considerarmos a frustração das esperanças do povo eleitor e a indesejável insegurança das forças de oposição, que convivem com a transmutação de seu Programa em Programa oficial do Governo, o que não corresponde aos seus propósitos. Afinal, nem a situação nem a oposição querem ficar sem bandeiras, comuns apenas quando o Programa de Governo é também Programa de Estado, possível nos regimes parlamentaristas, mas dificílimo nos regimes presidências.

*Aurélio Wander Bastos é professor universitário e conselheiro da OAB/RJ