Título: Bush, liberdade e justiça
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 23/01/2005, Outras opiniões, p. A11

Um dos maiores estudiosos do sistema de seguridade social e de transferências de renda dos EUA, Robert Greenstein, tem receio de que o presidente Bush fará uma proposta de reforma do sistema, visando a sua privatização

A posse do presidente George W. Bush, no último dia 20, foi relativamente tranqüila na capital dos EUA. O esquema de segurança foi o mais numeroso, sofisticado e equipado tecnologicamente da história dos EUA. Qualquer pequeno incidente, como, por exemplo, um protesto mais forte de um grupo de ativistas, em meio a muitos dos que compareceram nas cercanias da Avenida Pensilvânia para acompanhar a parada do Capitólio à Casa Branca, já provocava uma imediata mobilização de dezenas de carros, motocicletas e bicicletas de policiais, além da tropa de choque pronta para prevenir qualquer movimentação que pudesse ameaçar a tranqüilidade da cerimônia. O presidente, por onde passou, inclusive quando desceu do carro para caminhar a pé o último quarteirão e meio da tradicional parada, recebeu muitas manifestações favoráveis e aplausos. Mas também assistiu ao protesto dos que ali vieram para discordar, sobretudo da maneira como os EUA realizaram a guerra no Iraque. O discurso de Bush teve como tema principal o anseio de liberdade da América e de todos os povos do mundo.

As formas criativas de protesto se multiplicaram pelas ruas. Um jovem de cabelos longos, carregando um cartaz de protesto, passou a ser aplaudido quando, guindado a um lugar mais alto, começou a gritar ''love, love, love''.

Travei um interessante diálogo com o escritor Michael Barone, do Wall Street Journal e do U.S. News and World Report. Argumentei que há mais de um ano, quando em quase todas as grandes cidades do mundo como Londres, Madri, Roma, Berlim, Paris, São Paulo, Nova York e Washington, milhares de pessoas saíram às ruas para pedir que não se iniciasse a guerra no Iraque, tinha eu a esperança de que aquela energia positiva acabaria se transmitindo para Bagdá e outras cidades de Iraque. Ou que, provavelmente, ocorresse um movimento semelhante ao das Diretas-Já, no Brasil, em 1984, quando milhões de pessoas foram às ruas para pedir a democracia. Não precisamos que uma potência estrangeira invadisse o nosso território para que conquistássemos, em não muito tempo, a realização de eleições livres para presidente da República, governadores e prefeitos das capitais. Barone contra-argumentou que teria sido muito difícil derrubar o regime de Sadam Hussein, a não ser pela força. Assim, mesmo, nesta semana, em que Bush participou, na segunda-feira, de tributo especial a Martim Luther King Jr - que teria sido tão crítico da guerra no Iraque como foi da guerra do Vietnã - não se deu conta de que poderia ter sido mais eficaz a conquista da liberdade e da realização de eleições democráticas no Iraque se tivesse se seguido o caminho da não violência.

Em nossa animada conversa fiquei sabendo que, assim como eu havia escrito no Brasil e outros na Europa e nos EUA, justamente Michael Barone, em fevereiro do ano passado, depois de ter realizado uma visita ao Alasca, escreveu um artigo no Wall Street Journal, sugerindo que os iraquianos seguissem o exemplo de dividendos proporcionados pelo Fundo Permanente do Alasca. Por este mecanismo, todos os residentes participam da riqueza daquele Estado. Seria um instrumento que poderia ajudar muito a democratização e pacificação do Iraque.

Notei que na última terça-feira, 18, o colunista E. J. Dionne Jr, do Washington Post, havia sugerido ao presidente Bush que inserisse no seu discurso de posse uma reflexão sobre o direito de todas as pessoas na América ter uma participação na riqueza da nação. Que se criasse um fundo a partir de uma expansão do imposto sobre a herança, que seria destinado a prover cada cidadão com uma parte da riqueza nacional.

Pois sem ter ainda desenvolvido o tema, nem especificado os detalhes de como será feita a sua proposta, Bush disse algo nessa linha: ''No ideal de liberdade da América, os cidadãos encontram a dignidade e a segurança da independência econômica, em vez de estar trabalhando na fronteira da subsistência. E agora vamos estender essa visão, reformando grandes instituições para servir às necessidades de nosso tempo. De prover a todo americano uma parte na promessa e no futuro de nosso pais, vamos levar os melhores padrões para nossas escolas e vamos criar uma sociedade em que todos tenham uma propriedade''.

Um dos maiores estudiosos do sistema de seguridade social e de transferências de renda dos EUA, Robert Greenstein, comentou comigo sobre seu receio de que o presidente Bush fará uma proposta de reforma do sistema, visando a sua privatização, o que poderá significar um grande retrocesso. As palavras proferidas por Bush em sua posse, entretanto, poderão significar um caminho inesperado. Não seria a primeira vez que um presidente conservador estaria fazendo uma proposta surpreendentemente progressista. Ocorreu com o presidente Richard Nixon, quando convidou o ex-assessor de John Kennedy e Lyndon Johnson, Daniel Patrick Moynihan, para formular o Plano de Assistência à Família, em 1969, que garantiria uma renda a todos os americanos, através de um imposto de renda negativo. Se o presidente Bush quiser de fato unificar e pacificar melhor o seu país e o mundo, terá que, de fato, surpreender bastante.