Título: Desarmamento e criminalidade
Autor: Antônio Bandeira e Josephine Bourgois
Fonte: Jornal do Brasil, 23/01/2005, Outras opiniões, p. A11

Ao se dispor a criticar o Estatuto do Desarmamento, o professor Gilberto Alves da Silva publicou no JB de 14.01.05 o artigo ''À mercê dos bandidos''. Tivesse ele consultado as estatísticas oficiais, teria chegado a conclusões bem diferentes.

O articulista cita Gary Mauser, cujas pesquisas são financiadas pela Associação Nacional de Fuzis, lobby da indústria de armas dos EUA e grande financiadora da campanha de Bush. A ANF é conhecida por manipular o medo, para que os americanos comprem mais armas. Assim, segundo Mauser, Austrália, Canadá e Inglaterra teriam implementado leis e campanhas de controle de armas, e fracassaram, enquanto os EUA estariam aplicando com êxito a política de ''mais armas, mais segurança''. Pois os governos desses países informam o contrário.

A Austrália, com lei de 1996, e campanha que recolheu 643.726 armas, nos 11 anos seguintes viu os índices de homicídio por arma de fogo despencarem em 43%, e os de suicídio em 51%, segundo o Australian Bureau of Statistics. O Canadá aprovou o Firearms Act em 95, restringindo o uso de armas, e reduzindo a taxa de homicídios cometidos com elas para 1,8 por 100.000 habitantes, nível mais baixo que os de 30 anos atrás, segundo o Canadian Center for Statistics. Já a Grã-Bretanha proibiu a posse de armas em 1997, e realizou campanhas de desarmamento em 1996 e 2003. O número de homicídios por arma de fogo, que era de 74 em 1993, foi reduzido para 62, em 1999, segundo o Ministério do Interior. Mas a lei não proibiu as réplicas e as armas de ar-comprimido, que passaram a ser adaptadas para tiro real. Assim, em 2002/03, o número de homicídios por arma de fogo subiu para 81. Em Londres, segundo dados da Metropolitan Police, 70% das armas usadas em crimes são réplicas de armas adaptadas, e as autoridades já discutem como também coibi-las. De qualquer forma, na Grã-Bretanha os homicídios representam apenas 0,8% de todos os crimes cometidos com arma de fogo. Tenta-se passar uma imagem negativa do efeito da proibição de armas no país, quando o que tem aumentado significativamente são os crimes em geral, não as mortes por arma de fogo.

Os EUA são citados como exemplo de liberalidade com as armas a ser seguido. Na terra dos serial killers, as armas de fogo matam 12 vezes mais crianças que nos outros 25 países industrializados. EUA e Canadá têm taxas de homicídios sem arma de fogo equivalentes, mas quando se comparam os homicídios com armas de mão, isto é, pistolas e revólveres, eles ocorrem oito vezes mais nos EUA que no Canadá, onde elas são controladas, de acordo com dados de seus governos, comparados pela Coalition for Gun Control.

O articulista considera a Campanha de Entrega Voluntária de Armas brasileira ''um fracasso porque não recolheu as armas dos bandidos nem reduziu o crime''. Os organizadores da campanha foram muito claros quanto a seus objetivos: recolher 80 mil armas, e colaborar para reduzir as mortes por ''motivos fúteis'': acidentes com arma de fogo, principalmente com crianças, suicídios e homicídios inter-pessoais, decorrentes de brigas de casais, de vizinho, no trânsito, bares e boates. Pois a campanha já recebeu 270.831 armas, a ponto de ser prorrogada até 23 de junho. Quanto à queda dos crimes mencionados, sua avaliação depende dos dados do Sistema Único de Saúde, que levam um ano para ser processados. Visando antecipar parte do resultado, o ISER está iniciando pesquisa em parceria com institutos de pesquisa de outros Estados, com base nos boletins de ocorrência das delegacias. Só então saberemos como foram afetados pelo desarmamento civil as várias modalidades de mortes por arma de fogo.

O que temos até agora são informações genéricas e parciais. São, contudo, bem positivas. Sugerem uma redução nos índices de homicídios por arma de fogo em 2004: São Paulo registrou queda de 18% , Estado do Rio, 19%, Pernambuco, 10,8% e a região metropolitana de Curitiba, 27%. Se essas reduções se devem apenas ao desarmamento, ou se nela influíram outros fatores, só as pesquisas em andamento dirão. O nosso rigor não nos permite ir além dessa constatação otimista.

Quanto a desarmar os bandidos, isso acontecerá quando o Estatuto do Desarmamento for inteiramente aplicado, com a marcação da munição, o aperfeiçoamento do banco de dados para rastreamento de armas, o combate ao contrabando e demais medidas previstas contra o tráfico de armas. Ao invés de criticar em abstrato o Estatuto, o articulista está convidado a se somar aos que pressionam para que ele seja plenamente executado. A nova lei oferece, pela primeira vez no Brasil, meios eficazes para que sejam desbaratados os canais que abastecem o crime com armas de fogo. A sociedade deve cobrar sua aplicação.