Título: Terrorismo inflacionário
Autor: Assis, José Carlos de
Fonte: Jornal do Brasil, 16/06/2008, Opinião, p. A10

Economista, professor, presidente do Instituto Desemprego Zero

Não temos um problema de inflação no Brasil. Nosso problema são os que tomam uma passageira flutuação nos preços de alimentos e matérias-primas como pretexto para justificar a continuidade na elevação da taxa básica de juros. É um embate de interesses, não de diagnósticos técnicos, ou de idéias. Ganha-se muito dinheiro no mercado financeiro, bilhões de reais, com a sustentação das taxas de juros em níveis estratosféricos. Para isso continuar indefinidamente, é preciso manter um clima de terrorismo inflacionário a fim de manter a opinião pública dopada.

Fazem isso em nome do interesse público ou, mais sutilmente, em nome da proteção das classes mais favorecidas, supostamente as grandes vítimas da inflação. Não discordo que os pobres sofrem mais com a inflação. Mas eles sofrem mais com as deficiências dos sistemas de saúde e de habitação, com os engarrafamentos de trânsito, com a violência na periferia. Para isso, os charlatões do mercado financeiro não têm remédio. Sequer tocam no assunto. Seu remédio é para combater a inflação, e é único: elevar cada vez mais a taxa básica de juros.

A ligeira pressão inflacionária que temos tido provém dos preços dos alimentos e de matérias primas minerais, puxados pelo aumento da demanda mundial, em especial da China e da Índia ¿ os dois gigantes do crescimento entre os emergentes. Não há solução a curto prazo para esse tipo de inflação importada. A resposta só será possível a médio e longo prazo, com o aumento vigoroso da produção interna e internacional. Isso significa que temos de tolerar uma pequena alta de inflação para acomodar o realinhamento de preços relativos. E só.

Alegar que o aumento dos juros vai arrefecer a alta de preços de alimentos no curto prazo faz parte do arsenal de charlatanismo dos professores-banqueiros que são hoje os guardiões da financeirização do Brasil. Como pode o preço do pão reagir ao aumento da taxa de juros? Expliquem como a alta da taxa básica de juros pode impedir que o preço do arroz e do feijão subam? Acaso vai inibir a demanda por esses alimentos? Acaso juro mais alto vai estimular os plantadores a produzirem mais? Ou não é exatamente o oposto: juro alto inibe a produção?

Artigo recente do ex-ministro Delfim Netto contra o terrorismo inflacionário brasileiro é um primor de rigor técnico e bom senso econômico. Fui um crítico implacável de Delfim nos anos da ditadura, mas é impossível desconhecer nele um dos mais notáveis economistas brasileiros, e certamente o mais didático. Além disso, tendo passado pelo crivo das urnas, purgou todos os pecados do autoritarismo, o que lhe vale hoje uma merecida posição republicana de conselheiro privado do presidente Lula ¿ infelizmente, nem sempre ouvido.

Delfim mostra como é impossível controlar uma inflação de custos com os métodos do modelo de metas usados pelo Banco Central. Não é diferente da opinião de outro grande economista, Joseph Stigliz, Prêmio Nobel, que em outro recente artigo desqualifica cabalmente esse modelo, e lamenta pelos países, a começar do Brasil, que o têm adotado. Elevar os juros para combater a inflação de alimentos é superpor ao desconforto da alta de preços a tragédia do desemprego. Seria isso pior para os pobres do que uma alta de um ou dois pontos em relação à meta de inflação?

Pois é disso que se trata: estamos falando numa flutuação, não em descontrole inflacionário. Não existe nenhuma razão, nas condições brasileiras atuais, para a inflação disparar. Não temos mais, como no passado, uma economia totalmente indexada. Os salários estão subindo porque acompanham a produtividade, não para correr atrás da inflação, por força de lei. O câmbio é flutuante, não temos mais o processo da minidesvalorização diária por decreto. A demanda cresce, mas cresce também a produção ¿ e é muito bom que tudo isso aconteça.

Seria a alta dos juros, como dizem, para reduzir o impacto da alta dos preços no cardápio dos pobres? Por favor, não nos façam de bobos. É fato que a inflação dos alimentos, 8%, está bem acima da média. Existe, porém, um remédio direto para contê-la. O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de alimentos e auto-suficiente em petróleo. Por medidas internas coerentes, é perfeitamente possível usar controles temporários de preços-chave. Como, por exemplo, o controle dos preços do minério que o Grupo Gerdau havia pedido contra a alta de preços do minério da Vale.