Título: Por que é difícil cumprir a lei
Autor: Souza, Jorge
Fonte: Jornal do Brasil, 16/06/2008, Opinião, p. A10

A região do Vale do Rio Bran- co, tardiamente conquistada pelos portugueses somente no século 17, situada na periferia da República é mesmo uma região que até a segunda metade do século passado se confundia com a desolação. Possui somente uma estrada federal de acesso ao Amazonas e ao resto do Brasil. É a BR174 (intrafegável), muito precária e objeto de constantes investigações do Tribunal de Contas da União devido a recursos que a ela são destinados para manutenção, mas que costumam sumir no caminho. Quando a companhia aérea Varig, que mantinha vôos para Boa Vista, entrou em colapso, o povo achou que não iria mais decolar para lugar algum. A emergência de novas linhas para a região solucionou o problema e afastou o pesadelo. Roraima tem um passado histórico muito curioso e até mesmo vergonhoso em se tratando da história do contato entre índios e brancos, principalmente nas suas áreas de savana ou lavrado, onde se instalaram os primeiros rancheiros da região. Trata-se de uma faceta da sociologia do rio Branco ainda pouco explorada. O conjunto das fazendas de gado desses rancheiros chegou a somar 350 mil cabeças durante as primeiras décadas do século 20. Eles se instalaram em territórios ocupados por indígenas. Inicialmente indígenas cederam e foram utilizados como mão-de-obra barata ou gratuita na lida com o gado. Relações sociais sustentadas entre rancheiros e indígenas, via de regra, demonstravam-se conflituosas, fragilizadas pela ausência do sentido da alteridade. O trabalho nas fazendas de gado afastava indígenas de seus familiares por algum tempo, o suficiente para fazê-los saudosos de seus parentes, fomentando neles a "fuga" de volta à maloca. Fazendeiros os achavam preguiçosos, parcimoniosos e fujões. Não conformados com esse comportamento dos nativos, passaram a tratar seus "funcionários" índios a ferro e fogo. Assim, não raro, indígenas trabalhadores de fazendas no Rio Branco foram ferrados com ferro utilizado para identificar o gado. As tentativas de integração nacional mais profunda de toda a região somente ocorreram a partir da era Vargas. Getúlio Vargas criou o Território Federal do Rio Branco em 1943 (Território de Roraima em 1962, Estado em 1988), estabelecendo um núcleo administrativo com servidores públicos, buscando responder minimamente às expectativas de urbanismo local. Dizem que o presidente, de tanto ouvir queixas de funcionários do SPI, dizendo ser o território a terra do cangaço, onde os indígenas fugiam para a Guiana procurando escapar do jugo dos rancheiros, mandou para a região o capitão Ene Garcez para dar jeito no cangaço do Rio Branco. Como visto, a luta dos índios em Roraima pela posse da terra é de longa data. O acirramento dos conflitos na terra indígena Raposa/Serra do Sol começa a fugir verdadeiramente do controle do Estado. O governo passa a permitir que o incidente cresça e ganhe volume na mídia, quando poderia ter recorrido à manutenção do estado de direito para resolver a contenda, quando mobilizou importante contingente da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança para devolver definitivamente a terra homologada aos índios no mês de abril. Ali vivem mais de 20 mil indígenas das etnias makuxi, ingarikó, patamona, wapixana, monoicó. Roraima é a última fronteira do Brasil ao Norte, longe do poder central, próximo das fronteiras internacionais da mídia mundial que concentra observações permanentes sobre a Amazônia. Fraco, mediante a reação de arrozeiros insurrecionados na terra indígena, o Estado decidiu sustar a operação Upatakon 3 para retirada dos insurgentes, postergando a ação, talvez na esperança de que os indígenas abdicassem de seus interesses de ocupar a área que lhes pertence por decisão do próprio governo federal. A fastidiosa proposta de rever a homologação da reserva pelo Supremo Tribunal Federal é uma declaração de incompetência do Estado ao recuar de uma decisão constitucional. A reserva é indivisível, inalienável e imprescritível, é propriedade da União e não se confunde com terras devolutas de Roraima. O discurso que propala a violabilidade da fronteira territorial é devaneio, só pode ser entendido como surreal. Toda a superfície da terra indígena é, por lei, franqueada a incursões ilimitadas das Forças Armadas brasileiras e da Polícia Federal, não havendo ali qualquer proprietário de gleba, já que o artigo 231 da Constituição Federal estabelece nulidade sobre todo título fundiário incidente sobre territórios indígenas homologados. No mais, a reserva abriga um pelotão de fronteira e outras bases construídas e mantidas para operação militar, o que certamente não ocorreria se pertencesse a proprietários particulares. Os indígenas que habitam a reserva são brasileiros, cidadãos da periferia da nação que cantam o hino e hasteiam a bandeira nacional diariamente em frente suas precárias escolas, na maioria das vezes construídas por eles mesmos com recursos próprios. Qualquer decisão tomada pelo Supremo que atente contra a manutenção da homologação da Raposa/Serra do Sol maculará definitivamente uma tradição jurídica que teve início em 1609, com Felipe III de Portugal. É uma tradição que reconhece e respeita os territórios indígenas desde a colônia. Inaugurará uma era de retrocessos, recrudescimento do preconceito às populações indígenas e, pior: abrirá juridicamente precedentes perigosos à explosão do ineditismo, facultando a solicitação de reexame de outras terras indígenas homologadas.