Título: A imprensa e sua liberdade
Autor: Santayna, Mauro
Fonte: Jornal do Brasil, 20/06/2008, País, p. A2

Os 200 anos de imprensa no Brasil estão sendo discutidos por jornalistas e acadêmicos, em seminário promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, que se iniciou terça-feira e se encerra hoje, em Recife. Mas foram comemorados de forma emblemática por um juiz eleitoral "auxiliar", com a imposição de multas à Folha de S.Paulo, à revista Veja e à senhora Marta Suplicy, por propaganda eleitoral antecipada. Os representantes do Ministério Público Eleitoral de São Paulo, que promoveram a ação, e o juiz, que proferiu a sentença, desconhecem o que é liberdade de imprensa.

Se algum jornal optar por um candidato ou outro, tem todo o direito de proclamar suas virtudes, em qualquer tempo, no período eleitoral ou antes dele, da mesma forma que lhe cabe defender, ou combater, os governantes, com a mesma liberdade. Toda coação a esse direito significa censura. Ao longo da história do jornalismo brasileiro, excluídos os períodos de exceção, como os ditatoriais e os de estado de sítio, os jornais sempre defenderam e combateram idéias e personalidades públicas. Houve jornais e jornalistas que o fizeram por motivos menores, mas essa é a inevitável conseqüência da liberdade. Seja por escolha ideológica, interesse público, ou motivos menos nobres ¿ já que não há como distinguir a "boa" liberdade da "má" liberdade de expressão política ¿ a lei não submete os jornais e os jornalistas a qualquer condicionamento ou censura. Outra coisa ocorre com o rádio e a televisão, que são concessões do poder público. Nelas, ainda que seja difícil a aferição, é justo que o acesso dos candidatos ¿ depois de formalmente indicados ¿ se faça com eqüidade.

No encontro de Recife evocou-se o comportamento dos jornais e jornalistas nos turbulentos anos de formação do Estado Nacional. Submetidos os impressos à censura prévia até a volta da família real, em 1821, os pequenos jornais se multiplicaram a partir de então. Foi a rebeldia de seus redatores, na defesa de idéias e de grupos, que construiu a independência, impediu o absolutismo, impôs a abdicação e, daí por diante, forçou a Abolição e estabeleceu o sistema republicano. O jornalismo brasileiro teve, e continua a ter, seus mártires ¿ embora haja conhecido também notórios canalhas. De Líbero Badaró a Vladmir Herzog não foram poucos os abatidos na defesa de suas idéias contra os poderosos de cada tempo. Assim foi, durante o Império e durante a República, sobretudo nos períodos de exceção.

Os exageros da liberdade só podem ser contidos com mais liberdade. Contra os canalhas, que enxovalham a honra alheia, basta a lei penal, raramente aplicada no Brasil. Não há lugar para uma Lei de Imprensa em sociedades democráticas. Nem para conselhos ou ordens profissionais com o fim de regular uma atividade assalariada, como a dos jornalistas. A liberdade de imprensa é também a liberdade individual do jornalista, diante de sua corporação ou do patrão. Ele é responsável pelo que redige e assina. A liberdade de imprensa é a dos cidadãos, não é a da empresa jornalística, nem dos jornalistas: é o direito à liberdade de expressão, o primeiro dos direitos humanos.

Até o golpe de 1964, havia os veículos liberais (no sentido político estrito do termo) e os conservadores e os que defendiam, com mais veemência, os interesses do povo. Seus acionistas e editores tomavam partido. Os excessos de linguagem revelavam a paixão de seus redatores, na defesa dessa ou daquela causa, desse ou daquele político, com clareza, sem dissimulações.

Segundo afirma uma das promotoras à Folha, o jornal pode entrevistar a senhora Suplicy sobre a sua vida e as suas preferências. Saber, por exemplo, se gosta de boxe e de cachorros, mas não sobre como governar a cidade de São Paulo. É exercer censura anacrônica e reduzir a liberdade de imprensa aos gossips da crônica social ligeira.

Embora não saibamos onde esse juiz e esses membros do Ministério Público se formaram, a falta de cultura jurídica que demonstram é uma advertência quase tão grave quanto a sua tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa. A universidade, como instituição, tem de ser repensada no Brasil. Repensada, em primeiro lugar, para que todos conheçam a história do mundo, a história de seu país, da imprensa, da democracia, das idéias e da liberdade ¿ que são, enfim, uma só história.