Título: Uma mancha no Exército
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 20/06/2008, Opinião, p. A8

A tortura e o assassinato de três jovens moradores do Morro da Providência, no Centro do Rio, e seus desdobramentos daí decorridos escancararam as fragilidades do Exército na participação do Projeto Cimento Social ¿ o programa do governo federal conduzido por iniciativa do senador Marcelo Crivella, pré-candidato a prefeito pelo mesmo partido do vice-presidente da República (PRB).

As tropas militares saem chamuscadas no episódio no qual 11 integrantes do Exército capturaram os jovens e os entregaram a traficantes do vizinho Morro da Mineira. Compreensivelmente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva qualificou a ação dos militares de um erro "gravíssimo" e "abominável". Mais do que isso. A tragédia informou ao país que o Exército imiscuiu-se numa sucessão de equívocos, dos quais a maior lição parece ser esta: há um evidente despreparo para lidar com segurança pública. O secretário da Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, foi ao ponto no início da semana: "Se a Polícia Militar, que vive esse problema diuturnamente há 200 anos, tem suas mazelas, uma corporação que começou a fazer isso há pouco tempo já incorrer num problema desses é uma demonstração disso", afirmou.

Ontem o delegado responsável pelas investigações pediu o indiciamento, por homicídio triplamente qualificado, dos 11 militares envolvidos na morte dos jovens da Providência. O delegado considerou como agravantes o motivo torpe, o uso de meio cruel e a dificuldade de defesa da vítima. Foi mais um capítulo de um enredo do qual a instituição ¿ e não só estes 11 integrantes ¿ poderá sair indelevelmente enlameada. Antes dela, a decisão da juíza da 18º Vara Federal do Rio, Regina Coeli Medeiros de Carvalho, determinou saída do Exército da favela.

Seja qual for o desfecho dessas resoluções jurídicas, o episódio não só põe em xeque a presença das Forças Armadas na segurança pública de favelas e demais regiões de risco como deve servir para ampliar o controle civil sobre o Exército nesse tipo de operação. A insatisfação já é evidente. Na quarta-feira, com a retomada das obras do Cimento Social, moradores da Providência penduraram em um casebre um boneco de judas com roupa camuflada e coturnos, simulando um soldado.

Decidir ou não pela presença militar em áreas conflagradas pela violência está longe de ser uma questão simples. Há analistas respeitáveis defendendo uma ou outra posição. Para muitos, o militar não é treinado para funções de polícia. Para outros, a experiência exitosa no Haiti pode ser transportada para o Rio, embora a Constituição preveja seu emprego com restrições de local e períodos. Trata-se de um bom debate. Parece evidente, contudo, que neste caso sobram fragilidades. A começar pelos evidentes vínculos com um projeto de nítidas intenções eleitorais. Ou a mudança de premissas da própria iniciativa governamental ¿ de início um trabalho social, por fim soldados atuando como seguranças de operários numa obra a cargo de uma empreiteira terceirizada.

Não se desconhece o fato de que o crime organizado substituiu o Estado em muitas das favelas do Rio de Janeiro. Mas as ações das autoridades estaduais no campo da segurança pública inspiram mais otimismo. Forças federais ¿ sejam elas tropas especiais, sejam tropas do Exército ¿ muitas vezes são bem-vindas. É preciso discutir se é este o caso. O inquietante, por enquanto, é constatar que agentes públicos treinados para guardar a lei e a ordem agem como criminosos, sobretudo num momento em que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, anuncia um projeto de lei destinado à ampliação do uso das Forças Armadas na manutenção da segurança pública. Antes disso, será preciso esmaecer as manchas deixadas pelos delinqüentes fardados em ação na Providência.