Título: Justiça criminal: em busca da democracia
Autor: Darlan, Siro; Casara, Rubens R. R.
Fonte: Jornal do Brasil, 22/06/2008, Opinião, p. A11
desembargador e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, membro da Associação Juízes para a Democracia
Rubens R. R. Casara
juiz de direito do TJ/RJ, Doutorando em direito pela Unesa, mestre em Ciências Penais pela Ucam/ICC, membro da Associação Juízes para a Democracia e do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia
Todos os dias, atos de violênca praticados por agentes públicos chegam ao conhecimento popular. Muitos outros permanecem ocultos em uma teia na qual se pretende combater violência com violência, ilegalidade com ilegalidade. Assim, violência e ilegalidade no trato do poder penal acabam assimiladas na percepção popular como estratégias de poder inerentes aos órgãos estatais que exercem o controle social.
Ao lado dessas manifestações de violência explícita, que só adquirem visibilidade por se adequarem aos padrões da "sociedade do espetáculo" (Deboard), ou seja, por propiciarem fortes imagens para mediar/construir relações intersubjetivas com potencial de atraírem consumidores de notícias, há outras formas de violência estatal/institucional que acabam naturalizadas (uso abusivo de algemas, prisões cautelares desnecessárias, interceptações telefônicas despidas de seus requisitos etc) não percebidas como desvios por seus protagonistas e pela própria sociedade, que se acostumou com o arbítrio e ainda confunde autoridade com autoritarismo.
No Brasil, como em toda a América Latina, o estado de violência é estrutural. Apesar do elevado custo social, a utilização do poder penal (monopólio do Estado) para reprimir tanto as necessidades reais da população quanto os movimentos sociais que reinvidicam mudanças mostra-se eficiente para a manutenção das estruturas sociais existentes. As conseqüências do modelo capitalista, em especial após as revoluções tecnológicas, com o desemprego estrutural somado ao crescimento das necessidades artificiais de consumo, acabam por exigir a ampliação do âmbito de incidência do sistema penal. Diante da ausência do estado social reforça-se o estado penal, como bem denuncia Waqüant.
Nesse quadro, o Poder Judiciário aparece como uma mera "máquina de burocratizar" (Zaffaroni). E isso, por si só, é uma violência que atinge todos aqueles que necessitam do Poder Judiciário como garantia dos direitos fundamentais, como instrumento à concretização dos direitos e da justiça social. A repetição acrítica de enunciações jurisprudenciais (tão ao gosto do projeto de homogeneização do pensamento), com a ocultação do componente singular, dos fatores políticos/ideológicos e dos interesses que direcionam as políticas criminais (aqui entendidas como estratégias no trato do poder penal), acaba por privelegiar posturas conservadoras e, por essa razão, contribuir para a manutenção das desigualdades sociais sentidas pela população brasileira, em especial pela parcela marginalizada (na sociedade de consumo, "marginal" é aquele que não possui poder de compra).
Além da tendência conservadora, o perigo está em o magistrado começar a criar versões do mundo abstraídas do processo histórico, alheias aos conflitos sociais, aos choques dialéticos da sociedade. Para fugir da constatação de que sua vida profissional é marcada pela reprodução das desigualdades (e de que o "poder" que exerce não influi na dinâmica da sociedade, em especial na questão da criminalidade), acaba se rendendo aos "falsos sinais de poder" (Zaffaroni): solenidades, carros oficiais, insignias etc.
Diante do excesso de trabalho, opta por decisões definidas previamente, conferindo excessivo valor aos rituais e aos mitos que condicionam a interpretação/aplicação do direito. Por vezes, não raras, prestigia as estruturas de poder para evitar comprometer sua carreira (das promoções por "merecimento" à aposentadoria), sem perceber (ou se preocupar) que essa atuação apenas reforça os autoritarismos e as injustiças que acompanham historicamente a sociedade brasileira.
Diante do constatado (e sofrido pela população), o desafio é a construção de uma nova magistratura, capaz de superar a tradição autoritária que se faz presente nas posturas e decisões de seus integrantes. Uma magistratura comprometida com a concretização do projeto constitucional de vida digna para todos.
Garapond narra que a magistratura encontra-se na encruzilhada histórica entre sua origem aristocrática e a tentação populista. O magistrado que pretende superar a tradição autoritária e, ao mesmo tempo, não se render à tentação de julgar para agradar a opinião da maioria (o que, por vezes, significa sonegar os direitos das minorias), deve adotar uma postura de radicalidade democrática, o que implica no reconhecimento de que não é um "semideus", despido de ideologias ou de valores: ao contrário, tem que se reconhecer humano, passível de falhas e paixões; tem que ter consciência de suas limitações e não se proclamar detentor ou capaz de descobrir a verdade aristotélica; tem que dialogar com as partes, ver-se nas partes, compreendê-las.
O magistrado comprometido com a democracia é alguém que erra e acerta, mas sempre visando a realização da justiça; é uma pessoa que tem consciência de que poderia estar crucificada à esquerda de cristo na Gólgota.