Título: `Segurança pública é tema federal¿
Autor: Carneiro, Luiz Orlando
Fonte: Jornal do Brasil, 22/06/2008, País, p. A14

Presidente do STF se mostra preocupado com a onda de violência que assola o país. E destaca bom relacionamento entre os poderes

Brasília

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, acha "muito difícil", num sistema que estabelece a presunção de inocência, "valorizar de forma decisiva a existência de processos ou de ações cíveis de improbidade" para que a Justiça Eleitoral negue, tendo em vista a vida pregressa, o registro de candidatos a cargos eletivos. Mesmo em Estados "onde há proliferação de detentores de mandatos com expressivas folhas corridas e não currículos". Em entrevista ao JB, o ministro afirma, por outro lado, que "o tema segurança pública se tornou tão grande, tão premente, que é um tema federal", que não pode ser ignorado pelas Forças Armadas. A seu ver, o trágico episódio do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, é um "desvio" que pode ocorrer em qualquer instituição, e lembra a ação positiva do Exército brasileiro no Haiti. O presidente do STF discorre, também, sobre a atuação do tribunal como corte cada vez mais constitucional e a edição em série de súmulas com efeito vinculante.

A Constituição completa agora 20 anos com 56 emendas, e neste período o STF recebeu mais de 4 mil ações de inconstitucionalidade. Esses números são positivos ou negativos?

¿ Tenho a impressão de que, quanto ao número de emendas, é um dado inevitável. Tivemos um texto constitucional analítico, extremamente detalhado sobre as mais diversas questões, muitas delas, tradicionalmente, de legislação ordinária. Assim, era certo que, em algum momento, teríamos necessidade de revisões, que começaram pela ordem econômica, depois na esfera previdenciária e, finalmente, na institucional. Não me surpreende o número expressivo de emendas, em face do caráter analítico da Carta.

Quer dizer, o senhor considera isso um indicador normal.

¿ Poderíamos perguntar se seria recomendável que as constituições tivessem essa ou aquela feição, e teríamos respostas certamente diferentes. Mas o fato é que essa foi a Constituição que conseguimos fazer num momento bastante delicado da vida nacional. E, para surpresa de muitos, é a Constituição que tem propiciado a maior estabilidade institucional da nossa vida republicana. O país tornou-se muito mais complexo, muito mais plural, às vezes ¿ até em alguns pontos ¿ muito mais conflituoso. E esta Carta tem conseguido regular essa vida complexa, com todas as suas peculiaridades. Há um outro dado importante. O STF, hoje, é também uma espécie de órgão de controle da própria legitimidade das emendas constitucionais em face das chamadas cláusulas pétreas. E nesse sentido exerce com grande desenvoltura o seu papel. Quanto ao número de ações de inconstitucionalidade, trata-se de um dado expressivo. Aqui há todo um aprendizado. Do ponto de vista histórico, saímos de um modelo em que o procurador-geral da República era o único agente provocador do controle abstrato. A atual Carta ampliou o rol dos legitimados para propor essas ações.

O senhor assumiu há dois meses a presidência. Nota-se que tem dado prioridade à edição de súmulas com efeito vinculante. O STF é, cada vez mais, uma corte constitucional?

¿ Tenho a impressão de que o Supremo é a corte constitucional do Brasil de forma inequívoca. Acumulou, ao longo dos anos, a "expertise" para lidar com os temas constitucionais. Tem competências outras que não tratam diretamente dessa matéria. Mas, fundamentalmente, sua missão mais relevante, hoje, é típica de corte constitucional. E agora, com a súmula vinculante, vem encontrando uma forma de transformar as decisões às vezes tomadas em processos subjetivos em processos com efeito vinculante. Tal como pretendeu, de alguma forma, o próprio constituinte, ao criar o instrumento da repercussão geral, que permite a seleção dos processos relevantes, com a possibilidade de edição de súmulas, desde que o entendimento esteja consolidado. Avançamos significativamente, e já celebramos a 10º súmula com efeito vinculante.

Foram três no ano passado e mais sete este ano. Quando é que o cidadão vai sentir o efeito prático dessas súmulas?

¿ Tenho a impressão de que já começa a perceber. Temos dados a indicar uma queda significativa da distribuição dos processos aqui no Supremo. Podemos selecionar os recursos que serão julgados e só julgar os casos relevantes, os chamados "leading cases", e depois reproduzir as decisões em outros casos. Assim, vamos diminuir o tempo de demora das demandas. Isso já se reflete no STF e vai refletir também nas instâncias inferiores. Aposto numa diminuição significativa de processos nos tribunais em geral, em matéria constitucional, e também na repercussão dessas decisões no âmbito da Administração. Aposto que muitos cidadãos vão ter os seus pleitos deferidos a partir de uma súmula vinculante no âmbito da Administração, sem necessidade sequer de se ajuizar uma demanda.

Como estão as relações entre o Executivo e o Judiciário?

¿ Aqui ou acolá nós temos algumas querelas que são mais querelas retóricas. Mas, no geral, temos uma relação de harmonia com o Legislativo e com o Executivo. Eu diria até que, neste momento, nós vivemos um tipo de entendimento, até pessoal, bastante feliz.

O senhor não sente mais aquelas críticas de que o STF estaria legislando, em face da omissão do Congresso?

¿ A idéia era de que o Judiciário só poderia ser, quando fazia o controle da constitucionalidade, um legislador negativo. Mas quem tem poder cassatório também atua, um pouco, de forma positiva. As funções do Judiciário ao longo do tempo mudaram muito. A Carta de 1988 quis isto, ao criar, por exemplo, o mandado de injunção. Ou seja, um mecanismo de constrangimento institucional do legislador para que não deixasse determinadas normas constitucionais sem a devida regulamentação. E o próprio STF, nestes 20 anos, desenvolveu um intenso aprendizado institucional. Vem, aos poucos, revendo aquela orientação inicial de apenas recomendar, o que muitas vezes levava a uma atitude de inércia do Legislativo. Como no caso do direito de greve do servidor público, no qual, ao julgar mandado de injunção, o tribunal optou por rever aquela posição. Mas sem legislar. Mandou aplicar, com as adaptações devidas, a lei de greve aprovada em 1989, pelo Congresso, para o serviço privado.

As Forças Armadas, em particular o Exército, devem ser empregadas no combate à criminalidade?

¿ Essa é uma discussão extremamente difícil, a ser examinada também numa dimensão política. Mas o texto constitucional não impede a atuação das Forças Armadas para preservar a ordem pública. Pelo contrário. É um tema que a ser avaliado politicamente, tendo em vista, inclusive, o estado de insuficiência das ações de segurança pública confiadas fundamentalmente aos Estados. Minha impressão, como um observador privilegiado da cena nacional, é de que esse tema segurança pública se tornou tão grande, tão premente, que é um tema federal. Não há como afastar a presença da União nesse tema, seja mediante a ação das Forças Armadas ou da Força Nacional de Segurança.

Então o senhor acha que o que aconteceu no Rio foi uma exceção?

¿ Eu vi manifestações no sentido de que o episódio era prova de que as Forças Armadas não podem ser empregadas em ações policiais. Mas, definitivamente, nós acompanhamos também, na imprensa, as ações empreendidas por nossas Forças Armadas, especialmente pelo Exército brasileiro no Haiti, que eram típicas ações policiais, tidas como exemplares e elogiadas pelas Nações Unidas. Em todas as instituições vamos ter desvios.

O que o senhor poderia falar dessa polêmica sobre a questão da vida pregressa dos candidatos?

¿ O próprio Tribunal Superior Eleitoral já sugeriu ao Congresso que tratasse do tema, se fosse o caso, em lei complementar, fixando um novo critério de inelegibilidade. No passado, o TSE já se manifestou contra a constitucionalidade de lei que previa a inelegibilidade de quem tivesse antecedentes criminais. É muito difícil, num sistema que estabelece a presunção de não-culpabilidade, valorizar de forma decisiva a existência de processos ou mesmo de ações cíveis de improbidade. Ou seja, de processos ainda não definidos. Para impedir a candidatura das pessoas, por outro lado a gente sabe também que não é muito difícil, na luta política, num processo dialético, engendrar processos contra adversários. É possível se conceber, por exemplo, que um dado chefe de Executivo, prefeito ou governador, produza ações contra eventual adversário, provocando essa situação de eventual inelegibilidade. Assim, esse tema demanda muita cautela. Compreende-se a revolta de parte da população e também do seguimento judicial com a questão, especialmente em alguns Estados onde há proliferação de detentores de mandatos com expressivas folhas corridas e não currículos. Mas é preciso ter cautela e saber também que essa seleção deveria ser feita pelo eleitor e, inicialmente, pelos partidos políticos. O meu temor é de que faltem critérios e de que depois incorramos em excessos.