Título: A inflação não vai acabar agora
Autor: Totinick, Ludmilla
Fonte: Jornal do Brasil, 22/06/2008, Economia, p. E2

Esse amargo regresso da inflação. É assim que o economista Salomão Quadros, coordenador de análises econômicas da Fundação Getúlio Vargas, compara a alta dos preços praticadas no Brasil atualmente. Autor do livro Muito além dos índices, lançado recentemente pela editora FGV, conta que a experiência tem um lado didático, pois fará com que a população e o governo fiquem atentos para que a inflação não recobre forças e se espalhe por mais setores da economia. Como saída, é favorável ao aumento das taxas de juros pelo Banco Central e endossa outras providências do governo, como a contenção dos gastos públicos e inovação no setor agrícola.

No seu livro, o senhor alerta para a vigilância permanente do controle da inflação. Hoje ela é uma preocupação?

¿ Vamos qualificar a palavra preocupação. A inflação é um motivo de preocupação, mas não que tudo será como antes. Isso não vai acontecer. A volta da inflação será superada, mas não deve ser esquecida para mostrar que não existe vitória definitiva sobre ela. Todo mundo tem noção de que a inflação não acabou. É um fenômeno que requer preocupação constante da política econômica para que ela não retome. Não é o caso do Brasil, em que a atual fase do ciclo econômico propicia um pouco a formação de inflação. A gente está numa fase em que os salários estão subindo, o emprego está aumentando, as empresas estão contratando. Fase de aquecimento econômico. Mas se houver desequilíbrio entre oferta e demanda, os preços começam a subir.

O que fez a inflação subir este ano?

¿ A questão externa tem impacto maior, pois ela é muito forte. Em outros países, os alimentos têm um papel relativamente menor, são economias mais ricas, de consumo mais diversificado, os alimentos não têm a mesma importância que têm aqui. Também há inflação no setor da construção, o que não tem nada a ver com a inflação que afeta o resto do mundo. Isso mostra claramente a transmissão de alguma coisa que começou na indústria e já chega num estágio adiante.

Que setores também sofrem com a inflação?

O setor de máquinas começa a repassar o aumento lentamente. Máquinas e equipamentos usam muitos produtos siderúrgicos, como o trator. O repasse da siderurgia já está chegando, mas como esses aumentos pesam pouco no bolso do consumidor, ele ainda não sente.

Existe algum setor que merece atenção?

¿ O preço mais alto dos fertilizantes terá repercussão grande na inflação dos alimentos do próximo ano. A maior parte da safra de soja, que já foi colhida esse ano, foi plantada no ano passado e foi antes do aumento de 80% dos fertilizantes. Na hora do plantio, o cara vai pagar o dobro. A ração também vai estar mais cara.

A alta dos alimentos vai continuar?

¿ O problema da inflação dos alimentos não vai acabar agora. Não vai ser tão intenso no segundo semestre e no próximo ano, como foi no ano passado.

O Brasil é quase auto-suficiente em todos os produtos, não?

¿ Não é auto-suficiente em trigo, mas na maioria dos produtos é até um grande produtor.

A alta dos alimentos poderia ser muito maior se o Brasil não fosse o celeiro do mundo?

¿ Poderia, mas hoje os preços são cada vez integrados internacionalmente. O preço da soja aqui é o mesmo do exterior. O preço do arroz, há dois ou três meses, estava parado. Atendia perfeitamente o consumo e o preço estava equilibrado. Porém, com o início da crise no exterior, o preço daqui subiu. Mesmo sendo auto-suficiente, você não está isolado do resto do mudo. Se o preço do arroz sobe no mercado internacional, o produtor brasileiro vai preferir vender lá fora.

Somente a alta das commodities é responsável pela subida dos alimentos no Brasil ou existem outros fatores? Quais?

¿ O uso dos alimentos para fins energéticos também sustenta a alta dos preços. Como o caso do biodiesel, do etanol de milho, a soja também pode ser usada para fazer biodiesel. Se o preço do petróleo sobe, o biodiesel se torna mais atraente. Assim, aumenta a demanda de soja. O preço também sobe. Ou seja, é mais um elemento de pressão na cadeia da produção agrícola. A agricultura passou por um período de preços baixos e a produção mundial não evoluiu tão rápido assim. Os estoques diminuíram. Serão necessários de dois a três anos de produção intensa para atender a demanda.

O clima pode atrapalhar esse prazo?

¿ Além do clima, temos os acidentes de percurso que podem tumultuar e atrasar ainda mais. Mas no caso da inflação, a pressão não será tão forte assim. Se regularizará aos poucos, não será como no passado, quando você tinha uma safra ruim, mas logo conseguia recuperar com aumento da produção. Agora não, o Brasil está integrado ao resto do mundo, que vive escassez. Serão necessários no mínimo dois ou três anos.

O senhor acha que o governo deve intervir para regular o preço desses alimentos básicos, pois a população de baixa renda é a que mais sofre?

¿ A população de baixa tem a renda mais comprometida com alimentação. O problema é que não há muita coisa a ser feita a curto prazo. O governo, por exemplo, desonerou o trigo, tirou alguns impostos que incidiam sobre ele, mas não é medida de controle da inflação. Isso não vai resolver a questão. Será um alívio momentâneo. O processo tem a ver com o excesso de demanda sobre oferta, ele só vai conseguir regularizar isso se diminuir a demanda, porém acho que não o objetivo do governo não é restringir a demanda de alimentos. Teria de aumentar a oferta

E como o governo pode aumentar a oferta?

¿ A curto prazo você não tem como aumentar. Da onde você vai tirar esse produto? A importação não vai resolver o problema, já que a alta é mundial. O Brasil está importando feijão da China, mas o preço não caiu. Tem de haver produção, ela tem de ser plantada, colhida e isso leva tempo. O feijão teve uma das maiores altas da história, subiu 150% no ano passado. Mesmo com a alta, preço favorável ao produtor, o crescimento da produção este ano foi pequeno.

Alguma medida pode ser adotada?

¿ O governo deveria garantir desenvolvimento tecnológico, criar programas de pesquisa para melhorar o rendimento do plantio, adaptar determinadas espécies de sementes para regiões específicas do país para não causar impactos ambientais, isso não vai resolver o programa atual, mas será benéfica para o futuro do país. O Brasil poderá realmente ocupar posição importante no cenário dos alimentos. A base virá com tecnologia, inovação, criação de novas variedades de produtos que sejam mais resistentes a pragas, isso será essencial para o Brasil aproveitar o momento.

A população de baixa renda é a mais prejudicada?

¿ Sim. Aqui na Fundação Getúlio Vargas temos um índice de inflação para baixa renda, que é divulgado há alguns meses. A inflação para a classe social de até 2,5 salários mínimos já tinha passado de 8,25%, enquanto a média para todas as camadas estava em torno de 5,5% nos últimos 12 meses até maio. Continua aumentando e vai passar de 10%. Porém, o governo deveria anunciar que vai corrigir o Bolsa Família. Deveria haver um remanejamento orçamentário, tem se falado muito nisso. Uma das maneiras de combater a inflação sem causar grande recessão é combinar política monetária e fiscal.

Subir os juros é uma saída?

¿ Não adianta só o Banco Central subir os juros. Se o BC aumentar os juros vai conseguir combater a inflação, mas o custo será maior, pois irá desaquecer a economia. Com uma política fiscal de contenção de todos os gastos, a demanda provavelmente diminuirá. Não há necessidade de reduzir a demanda de consumo. Se o governo gastar menos o consumidor e as empresas não serão tão afetados. As empresas não precisariam diminuir os investimentos.

Como isso será resolvido?

¿ Como o aumento do Bolsa Família ele dará à camada mais necessitada da população a possibilidade de não passar fome outra vez. Isso é improvável já que o Brasil não é um país miserável como alguns países muito pobres da África. Isso seria muito importante para não interromper a entrada desse grupo no mercado consumidor. Em cada momento é necessário alterar as prioridades de gastos. Acho importante corrigir o Bolsa Família, sei que causará aumento dos gastos, mas será excelente oportunidade de cortar outra coisa.

O que o senhor acha da dívida pública do Brasil?

¿ Os indicadores mostram que o Brasil não gasta pouco, acho que há problema muito sério de gestão, de administração correta das prioridades. Acho que o governo está longe de utilizar o dinheiro corretamente. Está mais preocupado em aumentar o volume de recursos por mês, vai passar o novo imposto.

Os juros brasileiros estão em 12,25% ao ano e a projeção da inflação já supera a meta. O remédio da alta de juros não corre o risco de impedir o crescimento e se tornar amargo demais?

¿ Uma das razões de ela ser alta é que, se a gente quer manter um ambiente de baixa inflação e não conta com a política fiscal, isso significa que os juros vão ser mais altos do que poderiam. Já evoluímos bastante no Brasil, mas a área fiscal anda muito devagar nos últimos anos os gastos e impostos aumentaram num nível que prejudica as atividades econômicas.

Qual a sugestão?

¿ Tem de fazer o caminho contrário. Exatamente o contrário do que o governo faz agora. Vão recriar a contribuição que vai substituir a CPMF . Deveria dizer que já usou a contribuição enquanto podia, mas que agora dará um jeito. Esse ano arrecada muito mais do que no ano passado, mesmo sem a CPMF, é um sinal de que não falta dinheiro. Mas é preciso trabalhar melhor com o dinheiro que tem nas mãos, fazer programas mais racionais e procurar mais eficiência.

O senhor considera o comportamento do Banco Central ideal?

¿ Ideal é uma palavra difícil. Seria importante que ele tivesse independência estabelecida por lei. Ele tem autonomia, mas quem garante que numa situação de crise ele aja com independência?

O Brasil vai continuar crescendo?

¿ Vai, mas crescerá menos. O Brasil passou 20 anos crescendo 2% ao ano, e nos últimos quatro anos está crescendo 4,5% ao ano. Gostaria de crescer 6%, mas não é sustentável para esse crescimento. O Brasil não tem estrutura para isso, não tem estrada, não tem pessoal qualificado. Passou vários décadas se arrastando, tem todas as condições de entrar num ciclo de crescimento sustentado, o ritmo tem de ser dosado. Não é uma perda.