Título: E os direitos e a democracia?
Autor: Dirceu, José
Fonte: Jornal do Brasil, 26/06/2008, Opinião, p. A9

Nossa mídia tem sido pródiga em notícias e reportagens sobre a violação dos direitos humanos e a falta de liberdade nos países não desenvolvidos, especialmente Cuba e China, para os quais tem dedicado amplo espaço, seja na cobertura envolvendo dissidentes cubanos e emigrantes ¿ chamados refugiados de Cuba ¿ seja nos editoriais conservadores. A linha editorial dada ao noticiário sobre os protestos e a repressão no Tibete é descaradamente parcial, um verdadeiro libelo contra a República Popular da China, para não dizer uma campanha explícita para diminuir o espetacular evento que aquele país promoverá, as Olimpíadas deste ano. A cobertura dos protestos em todo mundo contra o governo chinês, na passagem da tocha olímpica pelas capitais, transformou-se numa campanha midiática.

Relembro esses fatos e episódios para comparar com o comportamento dessa mesma mídia frente a política dos Estados Unidos e da Europa, com relação a migração. Nada que se compare às campanhas sobre emigrantes cubanos, tão ilegais quanto os mexicanos e haitianos, mortos na fronteira ou nas praias da Flórida ao tentar ingressar nos Estados Unidos; ou os marroquinos, angolanos e sudaneses, friamente aprisionados, espancados e humilhados pelas autoridades européias, seja na Espanha, Franca, Áustria ou Itália. Ninguém, e nenhuma autoridade, trata os emigrantes cubanos como ilegais. São heróis e lutam pela liberdade, quando a maioria apenas quer migrar, como os quase 30 milhões de latino-americanos que já vivem nos Estados Unidos e os milhões de turcos, angolanos, romenos, polacos, ucranianos, eslovenos, croatas, indianos etc. que vivem na Europa, como no passado viveram os emigrantes espanhóis e portugueses na França e na Alemanha e como viveram os milhões de europeus que migraram para os Estados Unidos e a América do Sul, principalmente Brasil e Argentina, nos séculos 19 e 20.

Não há precedente na história da humanidade de sucesso em qualquer política, seja democrática ou totalitária, que detenha uma onda migratória que tem raízes históricas, culturais, econômicas, sociais e políticas num movimento de sobrevivência e luta pela liberdade do ser humano e de uma comunidade. A história já devia ter ensinado aos líderes e às elites dos Estados Unidos e da Europa essa lição. As grandes ondas migratórias que salvaram a Europa de uma catástrofe são a prova cabal dessa verdade, ou seja, que não se pode querer impedir a vontade de um povo ou reprimir o desejo de uma nova vida, mesmo abandonando sua terra e cultura.

A Europa, ao aprovar uma legislação racista e autoritária, que viola os direitos humanos contra os imigrantes, rompe com sua tradição democrática e trai seu passado de nações cujos povos migraram. Isso sem falar na ameaça de transformar sua democracia num simulacro ou numa farsa, só sendo efetiva para os da raça européia. Qual é a diferença do nazismo, se não vale nada ter nascido na Europa se os pais são africanos, asiáticos, ou pior, árabes? Que diferença há do racismo e do preconceito do sul-africano, se sua religião, cor, comida, costumes, vestimentas são motivo para discriminação e banimento?

Mais grave que os muros que estão sendo construídos nos Estados Unidos, sob o silêncio da mídia ocidental, são as medidas aprovadas pela Comunidade Européia, instituindo prisões sem juízo, confinamento, expulsões, banimento provisório ou definitivo, uma tomada de posição final e definitiva contra as migrações e por sua pura e simples repressão. Uma vergonha. Nem uma palavra e nem uma menção a responsabilidade do colonialismo europeu pela miséria e pobreza, pelas ditaduras e guerras, pelo saque colonial dos países e nações de origem dos migrantes; nem uma política para apoiar o desenvolvimento desses países, para enfrentar a fome e pobreza nessas nações, única causa das migrações em massa que estamos assistindo, como em outras épocas da humanidade. Achar que medidas repressivas vão deter a migração de milhões de seres humanos em busca de uma vida melhor é uma ilusão.