Título: V., 16 anos, teve a infância roubada nas barbas do poder
Autor: Abade, Luciana
Fonte: Jornal do Brasil, 29/06/2008, País, p. A2

Luciana Abade

Brasília

" A criança e o adolescente têm direito ao respeito. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente..."

Dois mil e cem metros. Essa é a distância que separa o Congresso Nacional de um dos pontos mais tradicionais de prostituição de Brasília. É lá, também, que crianças e adolescentes são exploradas sexualmente. V. E. J, 16 anos, conhece bem o lugar. Aos 14 anos começou "a descer pra pista", onde fazia, geralmente, três programas por noite. Cobrava, em média, R$ 50, "mas os dois últimos eram mais baratos", R$ 30. Às vezes R$ 10.

A idade dos clientes variava. De "velhos" a "playboizinhos". Para evitar contratempos, o pagamento era adiantado. A prática, no entanto, não evitou a surra que levou de um cliente, nem a tentativa de assassinato por enforcamento que sofreu nas mãos de outro.

Com o dinheiro, comprava comida, roupas, presentes para o namorado e drogas. Ela costumava apanhar do namorado, que não queria vê-la "na pista", mas gostava dos presentes e os trocava por drogas.

Também foi aos 14 anos que V. E. J. ficou grávida. Perdeu o bebê no quarto mês de gestação. Quando tinha nove anos, perdeu a mãe para o câncer e o pai para a Penitenciária de Brasília. Uma vida de perdas. E culpa. Afinal, como relatou, "a sem-vergonhice puxou da mãe", como costuma ouvir da avó.

Sim. V. E. J. tem avó. E foi ela, "a minha véa" , quem a tirou duas vezes do Centro de Atendimento Juvenil Especializado de Brasília, onde foi parar por furto. Aliás, a "sem-vergonhice", segundo a mesma avó, também é herança do pai, preso há sete anos por roubo.

"Só Deus sabe"

O único sonho da adolescente é ser feliz. Como? "Só Deus sabe". Por hora, ela continua nas ruas. Não furta, nem vai "pra pista" há quase um ano, mas ainda não conseguiu largar as drogas. A história de V. E. J. não é nova. É só mais uma no universo de milhões de crianças e adolescentes vítimas de um Estado negligente, uma família desestruturada e uma sociedade omissa, que chama de prostituição infantil o que, na verdade, é exploração sexual.

Além do enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes, o combate ao abuso sexual desses menores é outro desafio que se apresenta para o país. Levantamento do Ministério da Saúde mostra que a agressão sexual é o tipo de violência que mais leva crianças e adolescentes aos hospitais: 43,6% das vítimas de agressão de zero a 19 anos foram estupradas.

O abuso sexual é cometido, na maioria das vezes, no ambiente familiar. De acordo com o mesmo estudo, das agressões constatadas em crianças de até nove anos, 24,9% foram cometidas por amigos, 16,2% pelo pai e 11,6 pelo padrasto. O levantamento foi feito em 27 unidades públicas de atendimento.

¿ O abuso sexual cometido nas relações interpessoais e domésticas é de uma perversidade democrática. Não tem classe social, nem referência geográfica - afirma a assistente social Neide Castanha, coordenadora do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

As conseqüências

Problemas com a própria sexualidade, dificuldade de relacionamento, baixa-estima, falta de confiança nas pessoas, depressão e dificuldades de aprendizagem são apenas algumas das conseqüências sofridas pelas vítimas do abuso e da exploração sexual.

Muitos apontam o vício em sexo como conseqüência da violência sexual. O que, segundo Neide Castanha, é um erro:

¿ É pejorativo dizer que existem crianças viciadas em sexo. O que existem são crianças erotizadas precocemente - explica.

Em casos de abuso sexual, principalmente intra-familiar, pesa sobre o denunciante o medo do que vai acontecer ao autor da violência, o medo da opinião da sociedade, da indiferença. Já entre as vítimas da exploração sexual existe, ainda, a dificuldade de ver-se vítima, "porque a sociedade atribui a prática ao campo da moral", acredita Neide.

Os integrantes das organizações de defesa dos direitos humanos são unânimes ao apontar a revitimização como um dos maiores problemas de enfrentamento a essa violência.

¿ Na nossa cultura, costumamos culpar a vítima pelo que aconteceu a ela - destaca Neide. - Não somos uma sociedade acolhedora.

Prova do crime

Atualmente, no caso de abuso sexual, a vítima é a principal prova do crime. Enquanto os agressores, em sua maioria, são homens, as vítimas são meninas. A situação cria um constrangimento prejudicial ao depoimento que, muitas vezes, ainda é repetido diversas vezes.