Título: A sobrevida da ficha suja
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 29/06/2008, Opinião, p. A10

O longo debate ¿ e os obstáculos daí enfrentados ¿ sobre a elegibilidade ou não de pessoas envolvidas em delitos, mas ainda sem condenação transitada em julgado, demonstram o quão pedregosa é a trilha que conduzirá o país à mudança ética estrutural na política. Os clamores vêm de todos os lados: de tribunais regionais eleitorais, da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), de tribunais de contas, de juízes eleitorais, de ministros do Tribunal Superior Eleitoral, dos pregadores da boa causa em geral e, acima de tudo, de um eleitor que, embora desesperançado com a política, está ansioso por um resquício de esperança para ver, na prática, a moralização de costumes políticos.

Nem a soma de esforços, porém, tem sido capaz de remover, de imediato, os destroços morais impostos hoje à política brasileira. Se vozes em defesa de mudanças emitem sons intensos, revelam-se igualmente impetuosos os entraves de resistência. O resultado foram alguns reveses da campanha deflagrada, em particular, pelo presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, Roberto Wider ¿ a começar pelo entendimento do TSE de que os políticos só podem ter o registro impugnado se houver condenação judicial em última instância. Para os ministros do tribunal, candidatos com "ficha suja" só poderiam ser barrados se o Congresso aprovasse lei complementar com a previsão expressa desse veto, possibilidade hoje considerada remota. Isto posto, não se romperão, por ora, os diques que permitem a detentores de mandatos eletivos freqüentarem com assiduidade as páginas policiais. Uma pena.

Os freios exibidos até aqui, no entanto, não significam que a causa imergiu numa espiral descendente. Ao contrário. Processos de expurgo costumam ser demorados. Exigem esforço, paciência e um dose contínua de bravura. Diferente disso, só o exercício demagógico do oportunismo. É no enfrentamento de normas oblíquas que os costumes evoluem. Assim será com a conquista da moralidade como condição para candidaturas a mandatos eletivos. O importante é que não sejam barrados, por nulidade ou conveniência. Não foi o caso. O movimento atual escancarou a urgência de uma lei de filtragem, capaz de dificultar o banditismo costumeiro da política cabocla, sem ferir a presunção de inocência consagrada na Constituição.

De novo, há passos notáveis sendo dados adiante. Um deles é a decisão, pela AMB, de divulgar a lista dos processos a que cada um dos candidatos este ano responde na Justiça. A entidade não está só. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado tem um grupo de trabalho destinado a estudar mudanças legislativas no campo das inelegibilidades, buscando impedir as candidaturas de nomes cuja vida pregressa se assemelha a um prontuário policial. A própria AMB protocolou uma ação ¿ Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ¿ em que pede ao Supremo Tribunal Federal a anulação da parte da lei de inelegibilidade, segundo a qual um político só pode ser barrado pela Justiça Eleitoral se tiver condenado em última instância. A ação, contudo, deverá ser julgada somente no segundo semestre, já que o tribunal entra em recesso esta semana e retoma os trabalhos no início de agosto.

Muitas vezes, convém lembrar, cabe a quem exerce o poder jurisdicional do Estado captar o "espírito da lei" por trás de sua letra, levando em conta o célebre ensinamento do Barão de Montesquieu. Tudo somado, o Brasil de bem poderá assistir a mais um adiamento de mudanças legais neste terreno. Mas um salto gigantesco já terá sido dado, como o sinal de alerta emitido aos partidos políticos de que precisarão abandonar o pernicioso hábito de oferecer legenda a cidadãos sem qualificação moral ¿ mais interessados na imunidade parlamentar, no foro privilegiado e no atalho fácil para o enriquecimento. É uma prática a ser barrada antes que desmoronem a política, as instituições e a democracia.