Título: O mundo cão dos jovens infratores
Autor: Abade, Luciana
Fonte: Jornal do Brasil, 01/07/2008, País, p. A3

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ¿ 18 ANOS

Eles ficam presos em locais inadequados, se drogam, poucos estudam. E continuam matando.

brasília

Sofrimento mental, transtornos psíquicos, dependência química e hematomas foram apenas algumas mazelas encontradas, em 2006, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Psicologia em adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas em meio fechado por todo o Brasil.

Segundo o relatório produzido pelos conselheiro, no Rio de Janeiro, especificamente no Instituto Padre Severino, os alojamentos eram inadequados, com características de cela. O ambiente tinha pouca ventilação, era pequeno e exalava mau cheiro. Os adolescentes reclamavam que a troca de roupa era feita a cada dez dias e alguns apresentavam sarna.

Em Porto Alegre, ainda de acordo com o estudo realizado em 2006, no Centro de Internação Provisória Carlos Santos havia 53 adolescentes nas oito celas destinadas a atender casos de punição. Entre eles, jovens recém-chegados que não tinham outro lugar para ficar. Em toda a unidade, com capacidade para 60 pessoas, havia quase 200. Cerca de 80% deles eram medicados com psicotrópicos.

Já em Manaus, no Centro Sócio-Educativo Dagmar Feitosa, os banheiros não possuíam condições mínimas de higiene. Não havia vasos sanitários nem portas divisórias separando a latrina do local destinado ao banho. Os internos estavam há oito meses privados de assistir televisão. Os adolescentes contidos por terem infringido alguma regra estavam há 30 dias saindo da cela só para tomar banho.

Esta é a realidade de apenas uma parte dos 15 mil jovens infratores que cumprem medidas sócio-educativas em meio fechado no Brasil. As medidas são apontadas por psicólogos, educadores e assistentes sociais como o calcanhar de Aquiles do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Uma realidade ainda pior é a dos adolescentes que dividem celas com adultos em presídios. O Brasil chocou-se recentemente com o caso de uma jovem de Abaetetuba, de 16 anos, que dividiu por várias semanas a cela com mais de 15 homens. Mas ela é apenas uma entre 651 que estão confinados com adultos em presídios no Brasil, de acordo com levantamento recente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH).

A grande dificuldade, segundo os especialistas, é municipalizar as medidas sócio-educativas em meio aberto. De acordo com estudo a ser divulgado pela SEDH nos próximos dias, dos 15 mil jovens infratores que cumprem as medidas sócio-educativas em regime fechado, 46,6% foram sentenciados por roubo, 17,2% por furto e 10,5% por tráfico.

Em muitos casos existe resistência por parte dos juízes na aplicação de medidas em meio aberto. O Rio de Janeiro é um exemplo. Apesar do conhecido quadro de violência da cidade, apenas 1.181 jovens cariocas estão cumprindo este tipo de medida. O número corresponde a menos de 4% dos 45 mil jovens que cumprem medidas sócio-educativas em meio aberto em todo o Brasil. A falta de infra-estrutura em alguns municípios também dificulta a implementação desse regime de ressocialização.

¿ Imaginávamos que, aos 18 anos, nós teríamos uma retaguarda protetiva como o estatuto desenhou ¿ afirma Selma Sauerbronn, promotora de Justiça do Distrito Federal. ¿ Mas a realidade é outra. Os adolescentes internados são vítimas da omissão da família e do estado e estão excluídos das políticas públicas.

Estrutura precária

Para o coordenador do Movimento Nacional dos Direitos Humanos em São Paulo, Ariel de Castro Alves, os centros de internação de jovens infratores no Brasil, com as estruturas precárias e frágeis que se apresentam e o formato similar de penitenciária, são um descumprimento claro do estatuto e contribuem para a reincidência no crime, uma vez que não ressocializam.

¿ Os governos municipais precisam municipalizar os programas de liberdade assistida ¿ diz. A experiência em São Carlos (SP), é um bom exemplo. Só 4% dos jovens infratores reincidiram no crime.

Segundo o gerente de Projetos da SEDH, Fábio Silvestre, a secretaria conseguiu, a partir de 2006, transformar a municipalização de medidas sócio-educativas em ação continuada. Para 2008, existe um orçamento de R$ 20 milhões, mas "os Estados e municípios devem dar sua contrapartida". Outros R$ 8 milhões serão destinados apenas para as medidas em meio aberto.

O drama dos jovens infratores, no entanto, não acaba com o fim da internação. Continua com a volta ao convívio social.

¿ Quando a criança é vitimizada, ela encontra um pouco de compaixão da sociedade ¿ acredita Selma. ¿ Mas quando está em conflito com a lei, a sociedade quer escondê-la bem longe, apesar do estatuto afirmar a co-responsabilidade entre família, Estado e sociedade quanto as garantias de direitos fundamentais.

O relatório de 2006 da OAB e do CFP afirma que o grande desafio estava em conferir efetividade aos mecanismos de controle. Porque denúncias e decisões judiciais pareciam não afetar, como deveriam, "a soberba do Executivo deliberadamente omisso, inconseqüente e incompetente".

Dois anos depois e às vésperas do ECA completar a maioridade, o quadro, de uma maneira geral, não mudou muito, segundo os especialistas ouvidos pelo JB. E os números da SEDH ¿ altos quando referem-se aos jovens infratores e baixos quanto o orçamento para políticas públicas voltadas para esse público ¿ estão aí para provar.