Título: Ingrid Betancourt, marco no século 21
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Fonte: Jornal do Brasil, 03/07/2008, Opinião, p. A8

O resgate da senadora Ingrid Betancourt deve ser visto como um epílogo em mais um ciclo que a América Latina esperava enterrar no século passado. Além do caráter cinematográfico, da operação em si, coroa uma estratégia bem-sucedida de estrangulamento da guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) pela eliminação de seu ambiente político, econômico e militar. Há muito a guerrilha deixara de ter motivação ideológica para ser um embolorado sobrevivente da bipolaridade que marcou a segunda metade do século 20. Do marxismo original, o pouco que ainda restava, se restava, foi ao túmulo com o chefe supremo, Manuel `Tirofijo¿ Marulanda. Tornara-se uma organização mais conhecida por seus vínculos com o narcotráfico, inclusive no Brasil, do que pela política. Desde dezembro, vem sofrendo reveses pelo Exército que a enfraqueceram. O de hoje é um dos piores e deve sinalizar aos que ainda militam na guerrilha que é hora de dar adeus às armas e tentar o processo político ¿ como a população colombiana já deixou claro por diversas vezes. As Farc ainda têm poderio, mas são mais caso de polícia do que de Estado.

Ingrid viveu seis anos como refém. Emerge do calvário no cárcere como uma heroína do século 21. Conhecida pela coragem com que denunciava atos de corrupção, a senadora defendia também questões ambientais e propostas avançadas na área de saúde pública, entre outros temas condizentes com um estilo político contemporâneo, menos vinculado às linhas dogmáticas e mais adaptado aos desafios da sociedade global informatizada. Fazia campanha para a presidência da Colômbia, pelo Partido Verde Oxigênio, dias após o então presidente, Andres Pastrana, ordenar a reocupação da zona desmilitarizada que entregara à guerrilha em nome de um processo de paz que nunca avançou. Ingrid sabia dos riscos, mas decidiu continuar. Acabou capturada e se tornou o símbolo de uma transformação cujos ecos foram ouvidos em toda a Europa.

O injustificável uso dela e de tantos outros reféns como moeda de troca impôs doloroso constrangimento à parte da intelectualidade de esquerda da França e do próprio Velho Continente. A ilusão romântica capaz de sustentar simpatia pelas teses revolucionárias das Farc, que vicejou por anos no imaginário coletivo nesse meio, desvaneceu-se minada pela vergonha. Mas não sem um preço: foi preciso que alguém com laços de sangue com o povo europeu passasse por uma enorme provação para que finalmente a opinião pública se colocasse a favor da campanha institucional colombiana contra os seqüestros, contra a associação clamorosa com produtores de cocaína e haxixe, contra a permanente pressão pelo terror contra as populações pobres.

A nova vitória de Álvaro Uribe também é um sério revés para as políticas bolivarianas, humilhadas desde a morte do número 2 das Farc, Raul Reyes em dezembro ¿ cujo computador guardava a relação financeira que Hugo Chávez pretendia estabelecer com a guerrilha além das de conveniência política ¿ e outras baixas importantes. Enterra de vez a pretensão chavista de consolidar um papel de líder continental e reduz as chances de brilho de coadjuvantes como Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador ¿ um dos poucos países, por sinal, a "lamentar" a forma como a libertação de Ingrid foi obtida, como resultado de uma ação (perfeita) de inteligência militar e não como ápice de uma "processo de paz". Para o presidente colombiano, Álvaro Uribe, pavimenta solidamente o caminho em busca de um novo mantado presidencial, ainda que a Constituição do país não permita. A imagem de Ingrid Betancourt viva, agradecendo o apoio na televisão ajudará a engrossar a musculatura do referendo a partir do qual o Uribe almeja continuar à frente dos destinos do país. Com 80% de popularidade que tinha antes, a missão ficou mais fácil.