Título: Não se discute punição de militares
Autor: Arêas , Camila
Fonte: Jornal do Brasil, 25/06/2008, Internacional, p. A21

Dedicada ao estudo das ditaduras militares no Brasil e no Cone Sul desde 1997, a historiadora Samantha Quadrat lamenta a falta de vontade política em abrir os arquivos militares e permitir maior acesso aos já considerados bens públicos. A especialista assegura que, diferentemente da Argentina, a punição dos generais "é uma discussão que não cabe no Brasil", país que foi o maior asilo político para os latinos durante a pioneira transição democrática.

Pouco se sabe sobre o Brasil como destino de exilados latinos. Conte-nos um pouco sobre essa sua pesquisa.

¿ O principal retrato que temos é dos brasileiros deixando o país durante a ditadura, mas o movimento contrário foi intenso. O Brasil foi o que mais recebeu perseguidos políticos porque no auge das ditaduras vizinhas, iniciava a abertura. Além disso, o país é grande, o que faz crer que a clandestinidade é mais fácil. As fronteiras eram ultrapassadas com carteira de identidade e permitiam ao exilado manter-se relativamente próximo da família que não fugiu.

Qual foi a nacionalidade que mais recebemos?

¿ Argentinos, seguidos pelos chilenos e uruguaios. A primeira leva veio em 1966, quando o golpe de Estado do general Juan Carlos Onganía inaugurou a ditadura argentina. Eram, em sua maioria, intelectuais e idosos. Depois, com o endurecimento militar que culminou em 1976, vieram em massa profissionais, jovens e militantes políticos.

E o governo brasileiro foi receptivo?

¿ Foi, mas com cautela porque, se por um lado, queria manter sua imagem perante a comunidade internacional, tampouco queria que o Brasil se tornasse um centro de reorganização da esquerda. Assim, a regra era aceitá-los, mas pensar como tirá-los o mais rapidamente do país.

Em sua tese sobre a Operação Condor, você teve acesso a documentos de quais países? Quais foram as dificuldades?

¿ O Paraguai é sem dúvida o país que mais disponibiliza material para pesquisa, tudo pode ser fotografado. Na Argentina, a abertura impulsionada por Nestor Kirchner ajudou o processo. O Chile ainda é muito fechado, tive acesso aos documentos por meio de órgãos de direitos humanos. O caso brasileiro é misto. Os arquivos do Dops estão abertos separadamente em São Paulo, Rio e Minas, e os documentos da Divisão de Segurança e Informações (DSI) estão no Arquivo Nacional. Apesar de considerados públicos, muitos desses têm difícil acesso. Há casos por exemplo em que a autorização da família é requerida. Falta vontade política em promover acesso total aos arquivos, mesmo os catalogados.

O que resta pendente?

¿ Os arquivos militares. Muitos documentos foram levados para a casa dos generais, que ainda assim insistem em dizer que os arquivos não existem mais.

Há alguma estimativa de quão grande é este arquivo?

¿ Não, nenhuma, mas posso imaginar que seja muito grande pautada apenas pelos documentos enviados ao Dops, aos quais tivemos acesso.

O Brasil ainda discute a abertura dos arquivos enquanto a Argentina avança na condenação dos militares. Há espaço para punição no Brasil?

¿ Não. Os parentes das vítimas são os únicos que apresentam essa reivindicação. Mas não há interesse da sociedade em punir ninguém. Aqui não cabe essa discussão.

O que nos distancia da Argentina?

¿ O impacto da repressão na Argentina foi outro. Com mais de 30 mil mortos e desaparecidos, os parentes das vítimas se organizaram rápido e estão na luta desde o início. A violência brasileira hoje é tão grande que olhamos para os desaparecidos do tráfico. Além disso, a lei de anistia no Brasil foi muito bem costurada, de fato, cravou um ponto final. E o consenso social construído em torno dos militares se perpetua. Muitos militares, inclusive, viraram nome de rua. A Ponte Rio-Niterói é o nome popular para Ponte Presidente Costa e Silva. Avenidas Presidente Médici se repetem em todo o país. E o agente da CIA que ensinava técnica de torturas ao militares brasileiros, Dan Mitrioni, é uma rua em Minas.