Título: O Supremo e a crise nacional
Autor: Santayana, Mauro
Fonte: Jornal do Brasil, 13/07/2008, País, p. A2

ENTRE O MOMENTO EM QUE FECHAMOS esta coluna e a edição de domingo, em que será publicada, terão passado um dia e duas noites, tempo longo em situações de crise. As horas estão sendo de intensa articulação conspiratória, pró e contra o gênio das finanças, como tantos consideram o senhor Daniel Dantas. Mais do que um especulador financeiro ousado, o rapaz, que conseguiu o apoio, confessado, de altas autoridades do governo para entrar no rendoso negócio da privatização das telecomunicações, é senhor de grandes segredos da República. Na hora em que se viu beneficiado por novo mandamus do presidente do STF, Dantas depunha na Polícia Federal e, de acordo com o que se soube, ameaçava "detonar" a República. É possível que, mais do que resguardar o banqueiro, o despacho do magistrado tenha procurado ­ dentro das regras jurídicas ­ proteger a República contra a ameaça de Dantas. Conhecidas figuras nacionais se encontram como se encontravam os passageiros e tripulantes do Titanic, na noite de 14 para 15 de abril de 1912, quando o luxuoso barco colidiu com a imensa rocha de gelo. Alguns entenderam logo que estavam diante do perigo, mas não lhes era possível prever a extensão da tragédia. O barco poderia livrar-se do pior, ou afundar-se, como acabou ocorrendo. No instante mesmo do choque, enquanto os passageiros comuns se assustavam, sem entender o que ocorria, os privilegiados da primeira classe subiam ao convés e ocupavam os botes de escape. O ministro Gilmar Mendes conhece a extensão do perigo. Sua rápida ascensão ao STF se fez nos altos escalões da República. Ele foi convocado pelo senhor Fernando Collor para ocupar o cargo de adjunto da Subsecretaria-Geral da Presidência da República, sendo em seguida nomeado consultor jurídico da mesma secretaria, funções que deixou, durante o governo Itamar, para participar da frustrada revisão constitucional de 1993/1994. No governo do senhor Fernando Henrique Cardoso, seus conhecimentos jurídicos o levaram ao cargo de subchefe da Casa Civil para Assuntos Jurídicos, antes de se tornar advogado-geral. Nos dois cargos, o ministro acompanhou de perto todo o processo de privatizações, e conhece sua anatomia. Seria inconcebível que tais processos não fossem submetidos ao seu conselho profissional. A diligente atuação no período credenciou-o para ser indicado para o STF pelo então presidente da República, no final de seu mandato. Ressalte-se a veloz carreira do jurista e a circunstância de ela se ter desenvolvido inteiramente no serviço do governo. O ministro conhece o poder em sua intimidade. A opinião pública se encontra dividida, entre a parcela dos que consideram excessivo o zelo da Polícia Federal, e vêem em sua atuação, e na atuação dos procuradores e do juiz Fausto De Sanctis, ameaça às garantias individuais dos cidadãos, e a grande maioria que aplaude a prisão de poderosos. Nesse momento é importante que não se percam os ritos republicanos, mas não podem ser tolerados os privilégios dos grandes. Abriu-se a crise entre o Ministério Público Federal, os juízes federais ­ solidários com seu colega De Sanctis ­ e o presidente do Supremo. Não sabemos se os integrantes da Alta Corte, como um todo, terão posição corporativa em defesa de seu presidente. Mesmo que defendam o direito do ministro Gilmar Mendes em conceder a ordem de habeas-corpus a Daniel Dantas, é provável que alguns deles divirjam no mérito. Pelas provas colhidas pela Polícia Federal, parece evidente que a permanência em liberdade do banqueiro constitui periculum in mora para o interesse nacional, ainda que a expressão possa parecer inadequada ao caso. Sexta-feira à noite, divulgava-se manifesto de 130 juízes federais contra a decisão do ministro Gilmar Mendes de mandar investigar o juiz De Sanctis pelo fato de o magistrado ter determinado a prisão preventiva de Daniel Dantas depois de sua ordem de soltura. De acordo com o documento dos magistrados, o ministro violou, com o pedido de investigação, a independência dos juízes, que devem decidir de acordo com sua própria consciência. Muitos estranham que o ministro Gilmar Mendes não se tenha considerado impedido de atuar no caso. Um destacado especialista em crime organizado, o juiz aposentado Walter Maierovitch, chegou a sugerir o impeachment do presidente do STF, por suas atitudes. Articulava-se, ainda na noite de sexta-feira, a auto-convocação dos demais ministros do Supremo para examinar, em pleno, e com urgência, a crise no Poder Judiciário.