Título: Lixo tóxico ainda é praga em Bhopal
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Fonte: Jornal do Brasil, 13/07/2008, Vida, p. A28

Vinte e cinco anos depois de acidente com fábrica que matou milhares, dejetos perigosos ainda têm de ser retirados e ninguém investigou quão fundo o material entranhou no solo e na água Somini Sengupta THE NEW YORK TIMES Centenas de toneladas de lixo ainda se degeneram dentro de depósitos com teto de zinco na esquina dos antigos terrenos da fábrica de agrotóxicos Union Carbide, quase 25 anos depois de um vazamento de gás venenoso que matou milhares e transformou a velha cidade num símbolo do desastre industrial. Os dejetos tóxicos ainda têm de ser retirados. Mais de duas décadas depois, salvo algumas checagens superficiais da agência ambiental estatal, ninguém investigou quão fundo o material entranhou no solo e na água, que surge nos poços da vizinhança com resíduos de pesticida em nível muito além dos permitidos. Tampouco alguém se preocupou com os interesses daqueles que beberam essa água e cultivaram jardins nesse solo e cujos filhos agora apresentam indisposições que vão desde lábio leporino até deficiência mental ­ uma segunda geração das vítimas de Bhopal ­ embora não se possa dizer com certeza qual a fonte de suas aflições. O porquê de se levar tanto tempo para lidar com o desastre é uma fábula épica da falta de efetividade e aparente apatia da burocracia indiana. O governo também não conseguiu fazer com que os donos da fábrica limpassem a confusão que deixaram. Mas a questão de quem paga pela faxina dos mais de 44 mil m² ganhou nova urgência num país que hoje deseja atrair capital estrangeiro. Foi aqui que, em 3 de dezembro de 1984, um tanque da fábrica despejou 40 toneladas de gás metil isocianato, matando aqueles que o inalaram enquanto dormiam. À época, esse ficou conhecido como o pior acidente industrial da História. Pelo menos 3 mil pessoas morreram imediatamente. Outras milhares morreram depois, com os efeitos tardios da exposição, de modo que não se sabe o número exato de mortes. Compensações Mais de 500 mil pessoas de- clararam ter sido afetadas pelo gás e pediram compensações de US$ 550. Algumas vítimas dizem ainda não ter recebido o dinheiro. As tentativas de extraditar dos EUA Warren M. Anderson, executivo chefe da Union Carbide (Associação dos Carburetos, em tradução livre), perduram, embora aparentemente sem muita energia. Advogados daqueles que moravam perto do local ainda caçam a empresa e o governo. Acorrentaram-se à casa do primeiro-ministro num dia e espreitam reuniões de acionistas, não deixando que Bhopal se torne uma tragédia esquecida na Índia. Insistem que a Dow Chemical Co., que comprou a Union Carbide em 2001, também adquiriu suas dívidas e deve pagar pela limpeza. ­ Se os restos tóxicos tivessem sido limpos, não haveria contaminação do lençol freático ­ defende Mira Shiva, médica coordenadora da Associação de Saúde Voluntária, um dos principais grupos a pressionar a Dow para que assuma as responsabilidades da limpeza. ­ A Dow foi um primeiro crime. O segundo foi a negligência do governo. A empresa afirma que não tem responsabilidade sobre a limpeza de algo que não tenha sujado. "Como nunca houve propriedade, não há responsabilidade nem dívidas para a tragédia de Bhopal ou suas conseqüências", escreveu o porta-voz da empresa, Scot Wheeler. Wheeler alega que a antiga propriedade da fábrica, assim como os dejetos que continha, foram passados ao governo da província de Madhya Pradesh em 1998. E acrescenta que, mesmo que quisesse, a Dow não poderia financiar os cuidados, pois abriria um precedente para futuras responsabilidades da empresa. Ruth Fremson/NYT DESASTRE ­ Na região, um tanque da fábrica despejou 40 toneladas de gás metil isocianato em 3 de dezembro de 1984, matando aqueles que o inalaram enquanto dormiam. Pelo menos 3 mil pessoas morreram imediatamente

Governo não pune responsáveis por medo de perder verbas Em carta de 2006 ao embai- xador indiano nos EUA, o presidente da Dow, Andrew N. Liveris, buscou garantias junto ao governo de que a empresa não teria responsabilidades sobre a confusão: " (...) em seus esforços para assegurar que tenhamos o clima apropriado para investimentos". O próprio governo se debate sobre quem vai pagar ­ conversas que estariam sendo levadas a portas fechadas não fossem as demandas por informação pública feitas por advogados dos residentes de Bhopal, que acabaram por revelar a correspondência com o governo. Mostrou-se que uma ala do governo, o ministérios de Química e Petroquímica, a quem foi delegado o encargo da limpeza do terreno, solicitou à Dow que pagasse US$ 25 milhões pelo custo dos tratamentos, enquanto outras importantes autoridades alertavam que forçar a mão na Dow comprometeria futuros investimentos no país. Um alto membro do governo, proibido de comentar publicamente o assunto, descreveu o dilema: ­ Você quer US$ 1 bilhão em investimentos, ou que essa situação pegajosa continue? ­ disse, chamando a situação de xeque-mate. Espera-se que o governo tome alguma decisão no fim do ano. Mas além da questão de quem vai pagar pela faxina, pergunta-se por que 425 toneladas de lixo tóxico ­ alguns advogados alegam que há muito mais enterrado sob o solo da fábrica ­ ainda estão lá 24 anos depois do vazamento. Há muitas respostas. Foi permitido à companhia desfazer-se do terreno deixando-o com o governo antes de limpá-lo. Processos de grupos de advocacia ainda estão rolando nos tribunais. E uma rede de em geral letárgicas e aparentemente apáticas agências governamentais não consegue se coordenar entre si. Abandono O resultado é a devastação no coração da cidade. A área da fábrica extinta, congelada no tempo, é um terreno baldio de quase 45 m² coberto de ervas, tanques corroídos e tubulações que zumbem como cigarras, onde o gado pasta e mulheres escavam à procura de folhagens que possam cozinhar para suas refeições diárias. Desde o desastre, movimentações danosas por parte dos residentes locais só aumentaram os problemas e aumentaram os riscos à saúde. Pouco adiante das muradas da fábrica está um poço preto azulado aberto. No passado, repositório de borra química proveniente da planta industrial de pesticidas, o buraco é hoje um lago onde crianças miseráveis e cachorros se banham em tardes quentes. Suas margens são banheiros a céu aberto, e em dias de chuva, ele flui pelas vias lamacentas do bairro extremamente pobre. O bairro cresceu pouco depois do vazamento de gás. Gente pobre aglomerou-se na região em busca de terra barata e construiu suas casas bem na beira do reservatório de dejetos tóxicos. Em certo momento, o poço foi fechado com plástico e concreto. Mas com o calor causticante, a tampa de concreto se quebrou. Os primeiros testes no lençol freático começaram, inexplicavelmente, 12 anos após o vazamento. O conselho de controle de poluição do Estado encontrou traços de pesticida, incluindo endosulfan, lindano, triclorobenzeno e DDT. Sedimentos do solo não foram testados. E a água nunca foi comparada com água de outras partes das redondezas. O conselho estatal achou que não havia motivo para preocupação. Ainda assim, em 2004, reclamações de moradores locais levaram a Suprema Corte a obrigar o governo a fornecer água potável para as pessoas com casas nos entornos da fábrica. Isso, 20 anos depois do acidente. "É um escândalo que esses restos perigosos deixados pela Union Carbide sem cuidados por 20 anos tenham se espalhado sob o solo e contaminado o lençol freático das redondezas", escreveu Claude Alvares, monitor da Suprema Corte da Índia, que visitou o local em março de 2005. Moradoras locais mostraram-lhe utensílios corroídos pela água e ele chegou a provar a água de um poço. "Tive de cuspir tudo. A água tinha um pavoroso gosto de química", relatou.

Centro de pesquisa havia alertado sobre perigos Quando o relatório sobre o gra- ve nível de contaminação local saiu, o governo já sabia há muito tempo das grandes chances de o problema existir. Um centro de pesquisa estatal alertou mais de 10 anos antes que, caso deixados sem tratamento, os resíduos tóxicos do terreno infiltrariam no solo e na água. Mais ou menos na mesma época, sob pressão pública, autoridades finalmente recolheram restos tóxicos escorridos em torno da fábrica, e os colocaram fechado a cadeado no depósito de teto de zinco dentro do terreno. Os resíduos deveriam ter sido levados para um incinerador na vizinha Gujarat, mas o governo, quatro anos depois, ainda têm de encontrar quem faça a transposição, empacotando o material. Houve também atrasos nas permissões de transporte, com a comunidade envolvida levantando questões sobre os perigos do translado. Ajay Vishoni, ministro de Gás e Saúde, disse estar confiante de que os dejetos não sejam mais daninhos, e ninguém lhe provou ­ a seu contento ­ que tenha havido contaminação da água no subsolo. ­ Isso foi um exagero ­ disse. Males respiratórios Em 2005, um estudo financiado pelo Estado pediu pesquisas epidemiológicas de longo prazo a fim de determinar o impacto na água que se bebia no local, concluindo ainda que, embora o nível de produtos tóxicos não fosse muito alto, a contaminação de água e solo causaram um aumento de males respiratórios e gastrointestinais. Na favela de Shiv Nagar, a 800 m da fábrica, Akash, nasceu sem o olho esquerdo. Agora, aos 6 anos, não vê nem fala direito. Seu pai, Shobha Ram, um doceiro que comprou um terreno no local muitas anos depois do vazamento e construiu uma casa de dois quartos, disse que as aflições do menino foram causadas por água bombeada do poço próximo ao reservatório. Também comentou que não lhe ocorrera que a água poderia ter pesticidas. ­ Soubemos do incidente do gás ­ conta. ­ Mas nunca pensamos que a água poderia estar contaminada perto da nossa casa. As histórias se repetem em outras áreas próximas. Para completar a tragédia, não há como saber a que grau a água pode mesmo ser a causa: anos atrás, o governo suspendeu os estudos de longo prazo.