Título: Metamorfoses a granel
Autor: Passarinho, Jarbas
Fonte: Jornal do Brasil, 15/07/2008, Opinião, p. A9

O resgate da ex-senadora franco-colombiana Ingrid Betancourt teria de provocar versões diversas inerentes ao conflito armado, quando se costuma dizer, vulgarmente, que "em tempo de guerra, mentira como terra". Os inimigos políticos de Álvaro Uribe diziam que ele não se interessava pela libertação porque ela, que teve apenas 2% do eleitorado quando candidata a presidente da Colômbia, tornar-se-ia imbatível, sob a auréola de mártir. Libertada, nos primeiros dias de euforia, ela agradeceu a Uribe e defendeu, lastimavelmente, um terceiro mandato para ele, o que seria razoável se a gratidão fosse devida a Hugo Chávez. Desmentiu a versão de uma estranha transmissora de rádio suíça, de que não se tratara de nenhum feito heróico do Exército colombiano, servido especialmente de seu setor de inteligência, mas de uma negociação paga com 25 milhões de dólares.

Era clara a mentira, que tinha a finalidade de ocultar a derrota das Farc e fazer jus à obsessão antiamericana, já que com a ex-senadora vieram quatro norte-americanos que também eram reféns. Poucos dias depois, foi ela recebida pelo presidente Sarkozy em pessoa e muito festejada pelos políticos franceses. Já Uribe recebia as primeiras farpas. "Sem as Farc, não existiria Uribe", disse ela à mídia internacional.Pior:discordou da maneira pela qual ele combate a guerrilha, como uma operação militar em que a vitória só ocorre quando se destrói o exército inimigo. Diz que por isso está ele isolado na América Latina, representando a extrema direita, pela qual mostrou sua radical divergência. Para Sarkozy, que venceu as esquerdas nas urnas, a declaração da visitante não deve ter sido das mais agradáveis. E mais: ela insinuou claramente que o objetivo primordial da Uribe não é outro senão o de vingar-se das Farc que mataram seu pai. A duração da gratidão durou o tempo das rosas de Malherbe. Finalmente, perguntada se se candidataria a uma próxima eleição, perdeu a firmeza com que dizia não, poucos dias antes.

A segunda metamorfose é a do presidente Lula. Não surpreende, tantas já exibiu desde o revolucionário do Foro de São Paulo. Disse ser indesculpável que os países não desenvolvidos atribuam sua pobreza à exploração das suas riquezas naturais pelos desenvolvidos, contrariando Lênin e sua obra sobre o imperialismo. A última, porém, chegou a provocar estupefação aos velhos companheiros: acaba de elogiar Geisel e Médici. A isso não chamo de metamorfose, mas de autocrítica. Determinar ao Itamaraty votar em Cuba para a Comissão de Direitos Humanos, da ONU, foi uma concessão ao velho amor por Fidel, do qual anda distanciado para tristeza do frade (?) Beto, ovelha negra dos papas conservadores, particularmente de Bento 16, ou também frei Beto, o humanista e escritor excelente que continua venerando Fidel Castro e honrando os sucessivos codinomes (Vítor e Ronaldo) com que serviu a Carlos Marighella, no período da luta armada dos comunistas, que Prestes disse ter tido apenas um efeito, o de prolongar no tempo o regime autoritário. Prestes já se reunira a Stalin e Brejnev e assim não pôde ler Millor Fernandes escrever que a luta armada teve outro efeito: o de enricar os que a fizeram menos como guerrilha e mais como bom investimento. Lula não foi dessa grei, mas é fiel à origem, pois foi colega das Farc no Foro de 2000, em São Paulo. Não chegou ao despautério de aliar-se a Chávez que ousou pedir ao mundo o reconhecimento de serem as Farc uma tropa insurgente. Ficou neutro. Como se se pode ser neutro no julgamento de um bando armado associado ao narcotráfico, seqüestrador de políticos, para negociar a libertação dos mais de 700 guerrilheiros prisioneiros de Uribe, e de quase mil pessoas que podem trocar a prisão nas matas por resgate pago aos seus arrecadadores. Sua última metamorfose foi a do conciliador que ensina aos comunistas colombianos que mais vale ganhar nas urnas que tentar a vitória pelas armas.

A mais espetacular metamorfose, todavia, é a de Hugo Chávez. Verborrágico, provocador, insultador que desconhecia o mínimo dever de polidez de um chefe de Estado no trato com outro, mesmo que de pensamento político diverso, acaba de descobrir a eloqüência do silêncio. Certamente depois que se deu conta de que a Venezuela não é a kolkose, a fazenda coletiva dos tempos de Stalin, que o não, ao referendo, abortou.