Título: Crise dá a Cristina chance de governar por si própria
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Fonte: Jornal do Brasil, 18/07/2008, Internacional, p. A23
Veto do vice-presidente à lei de taxação agrícola enfraquece Kirchner.
A Argentina mergulhou ontem em sua pior crise política dos últimos anos, depois de o Senado ter rechaçado, com o voto decisivo do vice-presidente do país, um projeto de lei que confirmava um polêmico aumento nos impostos agrícolas.
O inesperado fracasso dos governistas em aprovar a medida, a qual ratificaria a elevação de impostos que pesam sobre as milionárias exportações de soja para financiar os crescentes gastos da máquina estatal e conter a inflação, significa um duro golpe para a presidente Cristina Fernández, criticada por ter um estilo agressivo de governar.
Depois de 18 horas de debate acalorado, o presidente do Senado, Julio Cobos, que também é vice-presidente, decidiu surpreendentemente dar as costas para Cristina e rejeitar o projeto, desempatando a disputada votação que o governo dava como favas contadas.
¿ A presidente vai me entender. Não posso acompanhar a base governista. Estou agindo conforme as minhas convicções ¿ disse Cobos depois de votar, com nervosismo.
Vindo do partido oposicionista União Cívica Radical, Cobos aliou-se ao peronismo para integrar a coalizão vencedora nas eleições presidenciais de outubro.
O controverso aumento dos impostos havia chegado ao Congresso em junho, depois de quatro greves do setor ruralista e de vários bloqueios de estradas, medidas essas responsáveis por prejudicar o desempenho da economia. Em vista da resistência dos produtores, a presidente resolveu colocar a medida sob o escrutínio do Legislativo.
Horas depois da votação, Cobos declarou que não renunciará à Vice-Presidência, pois seria "trair a vontade do povo".
¿ Devem compreender que vivemos num espaço político distinto. Não sou um homem do peronismo e posso ter opiniões divergentes ¿ disse. ¿ E não concordo com quem diz que meu voto prejudica a governabilidade. As pessoas esperam a solução do conflito, isso também faz parte da governabilidade.
No entanto, o desconforto era flagrante. Segundo o Clarín, o vice sequer conseguiu falar por telefone com Cristina ou com o chefe de gabinete da Casa Rosada. No fim do dia, viajou para a província de Mendoza para ficar com a família. Mas avisou que voltará a Buenos Aires na segunda bem cedo ¿ isso se não for chamado pelos Kirchner antes.
A presidente participou de dois atos públicos durante o dia. No primeiro, evitou tocar no assunto. Mas a pressão pelo discurso a levou a mencionar a derrota no fim do dia, na periferia de Chaco. Com indiretas e sem nomeá-los, lançou críticas á falta de lealdade dos que votaram contra:
¿ Acompanharam-me alguns que não eram de nosso partido e me abandonaram outros que estavam conosco. Temos que saber, olho no olho, que nunca nos traímos antes.
Cristina, que acusou os setores agropecuários de "golpistas", defende a alta dos impostos como forma de distribuir melhor a renda. Além disso, segundo seus argumentos, a medida permitiria controlar o valor dos alimentos no mercado interno em meio a um aumento da inflação gerado por uma forte demanda internacional por grãos.
Na opinião de analistas, o governo precisaria da receita suplementar para financiar os crescentes gastos públicos e o pagamento de dívidas.
Outros apostam que o inesperado resultado da votação no Senado ¿ dias depois de o projeto ter sido aprovado pela Câmara dos Deputados ¿ deve marcar um momento de virada no estilo de governo de Cristina e do marido dela, o ex-presidente Néstor Kirchner, que continua a ter grande influência dentro do aparato estatal.
Durante seu mandato, de 2003 a 2007, Kirchner quase não enfrentou oposição e conseguiu implementar seu projeto nacionalista para a economia, para a política dos direitos humanos e para a construção de um espaço político. A disputa com o setor agropecuário começou por causa dos impostos, mas logo se transformou em uma batalha política. A imagem de Cristina sofreu, e seus índices de popularidade caíram 30 pontos percentuais desde janeiro, mostraram pesquisas.
¿ A derrota dá a Cristina a chance de realizar uma mudança em seu estilo de governo ¿ afirmou o analista político Rosendo Fraga.
A oposição concorda.
¿ Mais do que uma derrota do governo, Néstor Kirchner é o grande derrotado. Temos agora que dar uma oportunidade para que Cristina comece uma presidência republicana ¿ reagiu a líder da Coalizão Cívica, Elisa Carrió.
O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, ressaltou:
¿ Às vezes quando se perde, é que se ganha.