Título: Insensatez
Autor: Sergio Abramoff
Fonte: Jornal do Brasil, 22/01/2005, Opinião, p. A11

A chance de uma pessoa morrer em conseqüência direta do fumo é da ordem de 50%, mas a nível individual não é fácil convencer o dependente

A Organização Mundial de Saúde (OMS, WHO em inglês) acaba de conseguir a adesão do mínimo de 40 países necessários para assinar - pela primeira vez em sua história - um tratado internacional de saúde, destinado a traçar medidas consistentes de combate a mortes e doenças provocadas pelo fumo. Os países signatários do tratado, de maneira semelhante aos existentes para controle de armas nucleares ou de preservação da natureza, tornam-se legalmente vinculados e responsáveis em adotar seus termos e estratégias.

O tabaco é atualmente a segunda maior causa de mortalidade no mundo. A cada ano é responsável por 5 milhões de mortes, o que quer dizer que do início de sua leitura até este ponto, já morreram 3 ou 4 pessoas em conseqüência do hábito de fumar (estamos falando do absurdo de uma morte a cada 6 segundos!). A chance de uma pessoa morrer em conseqüência direta do fumo é da ordem de 50%, mas, infelizmente, a nível individual, não é fácil convencer ao dependente de que ele faz parte deste grupo, e que na melhor das hipóteses, morrendo de outras causas, sua qualidade de vida certamente será comprometida.

O Brasil teve um papel significativo no sentido de transformar a convenção inicial anti-tabaco (Framework Convention on Tobacco Control) em tratado e em lei. O chair (líder) do Grupo de Trabalho Intergovernamental (reunido em Genebra) e das três ultimas rodadas de negociações foi um brasileiro, embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Quantos de vocês eram conhecedores deste motivo de orgulho? Esta convenção inicial foi adotada na assembléia da OMS de maio de 2003, após três anos de negociações, e com a adesão do Peru (40º membro) em 30 de novembro de 2004. O tratado estará em vigor em 28 de fevereiro de 2005.

O lado triste da história é que o Brasil não é ainda signatário do tratado. Pasmem, não somos um dos 40 países que viabilizaram a sua efetivação! O protocolo de aprovação já passou pela Câmara, mas seu relator no Senado, Fernando Bezerra, vem sofrendo pressões intensas, por parte da indústria (imaginem o poder financeiro dos lobbies de quem paga 5% dos impostos arrecadados), e dos agricultores de tabaco, recentemente reunidos aos milhares no Sul, com a presença do senador Bezerra.

Os números realmente são impressionantes. Somos um dos maiores produtores de tabaco do mundo, com quase um milhão de toneladas no ultimo biênio. Exportamos 85% dessa safra, com receita anual para o pais de um bilhão de dólares, gerando centenas de milhares de empregos. Por outro lado, o custo da economia americana com doenças relacionadas com o fumo é de 150 bilhões de dólares anuais! (Desconheço estatística nacional). A questão vital, no entanto, é: será que nossos fumantes deixarão de fumar se cortarmos esta arrecadação e estes empregos?

O Brasil tem surpreendido o mundo com algumas iniciativas de liderança, e penso que deveríamos convocar os ministros da Saúde (a favor do tratado), Agricultura (contra) e da Economia (fiel da balança?), os representantes dos maiores produtores mundiais (China, Estados Unidos, Brasil e Índia respondem por 60% da produção mundial), para forçarmos uma posição de consenso, já que apenas a Índia é no momento signatária. Podemos ratificar o tratado (e devemos fazê-lo) a qualquer momento após sua entrada em vigor. Parece-me fundamental que usemos o peso desta decisão para arrastarmos conosco outros grandes produtores, para alcançarmos uma diferença pragmática.

Tenho a certeza de que o senador Bezerra, como representante do governo, terá fibra e ética suficientes para resistir ao poderio financeiro dos grandes lobbies (nos EUA calcula-se este lobby em U$ 1 milhão/dia!), e bom senso para saber que a experiência comprovada de um diplomata do quilate de um Seixas Corrêa (cogitado para a direção geral da OMC), caso direcionada a uma iniciativa heterodoxa como a sugerida, possa talvez mudar o rumo de uma tragédia anunciada. Afinal, nenhum montante de impostos ou empregos justifica um holocausto anual produzido e camuflado por traficantes de charmosas e acessíveis tragadas.