Título: Bobagem de gringo
Autor: Francisco Antonio Fabiano Mendes
Fonte: Jornal do Brasil, 19/02/2005, Outras Opiniões, p. A11

Se você não é da área jurídica, talvez nunca tenha ouvido falar em precatório, que é a ordem escrita de um Juiz de Direito, determinando à União, estado ou município, o pagamento em dinheiro da indenização devida a quem ganhou, em caráter definitivo, seu processo contra algum desses entes públicos.

O precatório existe porque no Brasil não se aceita o leilão de uma praça pública, nem se tolera que um município ou estado seja declarado insolvente. A cobrança da dívida do particular, que saiu vencedor no processo, é feita pelo precatório, que forma uma fila em ordem cronológica.

Na década de 80, a cidade de Nova York esteve a ponto de falir, curvada ao peso das dívidas, e isso motivou a campanha I ? New York, que saneou as finanças e evitou sua bancarrota. Os credores exigiram, na Justiça e nas ruas, seus direitos. A prefeitura de NY, pressionada, ajeitou-se como pôde, e tudo foi resolvido. E assim é, em todo lugar do que se convencionou chamar de mundo civilizado: a Justiça manda pagar e todos obedecem. Os poucos recalcitrantes amargam a execução coativa da lei, adicionando-se o risco de ''tirar férias'' na cadeia.

No Brasil, nenhum prefeito, governador ou Presidente da República perde o sono com as dívidas oficiais, porque nós, brasileiros, somos mais espertos: temos o ''precatório'', que é uma ordem judicial, mas que não precisa ser cumprida. Afirmará alguém: se a Justiça ordenou o pagamento, quem não cumprir vai preso ou será responsabilizado.

Na prática, não é o que acontece no Brasil, porque o precatório é de ''mentirinha''. O administrador limita-se a ignorar a ordem judicial, dizendo que não tem dinheiro para pagar, e tudo fica por isso mesmo.

Itabira, para Drummond, era um ''retrato na parede, mas como dói''. Para o titular do crédito - muitas vezes idoso, doente, carente -, o precatório é um papel na mão, mas que só lhe traz descrença na Justiça humana. Algo como cheque sem fundos que nunca pode ser cobrado.

Se o Juiz de Direito manda chamar uma pessoa para depor, e ela falta, pode ser detida, mobilizando-se o aparato policial para o recolhimento do faltoso à prisão, à disposição do magistrado. Afinal, Justiça é coisa séria. Se o administrador público não paga o precatório, continua ''livre, leve e solto''.

No estado do Rio de Janeiro, a dívida dos precatórios não é paga desde 1997 e passa muito de um bilhão de reais. O legislador, sempre bonzinho com o administrador faltoso, permitiu o parcelamento da dívida em 10 anos, mas nem isso adiantou: o Estado continuou sem pagar, o que não mobilizou o Poder Judiciário, nem o Ministério Público, nem o Tribunal de Contas. Todos eles integrados por pessoas honestas e competentes, mas que - em grande parte tolhidas por uma legislação bizarra - pouco conseguiram, em termos efetivos, para que os credores recebessem o que lhes é devido. O tamanho bilionário do endividamento é a medida exata da angústia, desalento e frustração dos credores.

Na década de 90, um secretário de Justiça quase foi preso porque não acatou, por picuinhas burocráticas, a ordem de soltura de um preso, cuja pena estava cumprida. Mas, quando o tema é precatório, nenhum administrador público é pessoalmente incomodado, e a dívida dos precatórios no estado do Rio de Janeiro a cada dia cresce mais, sem chance de recebimento, apesar das promessas moralizadoras da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Democrático, o ''calote oficial'' é praticado no Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, e onde mais queira o administrador local. Exceções honrosas: a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e a União.

Bezerra da Silva dizia que ''malandro é malandro, mané é mané''. Se você é credor de um precatório, você é mané. Console-se lendo a Constituição Federal, que lhe promete o estado democrático de direito, e saia às ruas para expor sua indignação. Caso fosse o devedor, o Estado iria mover-lhe execução fiscal, e o Poder Judiciário azeitaria suas engrenagens para atender aos reclamos do credor, penhorando tudo ou quase tudo do ''mané''.

Como você é credor de um precatório, carimbado como ''mané'' por Bezerra da Silva e pelo Governo Estadual, nem o Poder Judiciário, nem o Ministério Público nem o Tribunal de Contas têm o quê fazer, de eficiente, em seu favor. Mais duas coisinhas: deixe Kafka em paz na estante, e não invoque os precedentes estrangeiros: cumprir ordem judicial é bobagem de gringo.