Título: Pedra de Suassuna
Autor: Paulo Bentancur
Fonte: Jornal do Brasil, 19/02/2005, Idéias, p. 4

Romance d'a Pedra do Reino encabeça a reedição das obras do escritor e dramaturgo paraibano

Haja fôlego! Mas ao leitor não tem faltado quando ao autor não falta. E é o que sobra no romance síntese de nossa mitologia nacional: resumida e simpaticamente chamado de A pedra do reino. Em se tratando de um monumento, impressiona que mais de três décadas (a primeira edição saiu em 1971) não lhe deram fama de ilegível - até porque o estilo de Ariano Suassuna (João Pessoa, PB, 1927) passa longe de qualquer dificuldade; o desafio que ele nos lança e acompanhar a febril imaginação, a ação quase carnavalesca de um cenário que ele recupera desde as raízes mais remotas que fizeram não só nossa brasilidade mas a fizeram antes de tais raízes serem transportadas para cá em caravelas.

O quilométrico romance põe em movimento, a partir de uma cela onde um prisioneiro, Dom Pedro Dinis Quaderna, observa a vila na qual está cativo e seus murmúrios milenares, seus santos, seus guerreiros, todos à sombra impossível de um sol escaldante. Estamos no começo de uma impressionante saga de pés-no-chão rodeados de transcendências, mescla do mais deslavado folhetim, passando pela irresistível natureza picaresca e chegando à gravidade profunda que contém o gênero épico.

O sertão que se distende ante Suassuna é uma espécie de anti-Vidas secas. Naquele, o inferno se constrói pela desertificação, alimentado pela migalha de nem haver esperanças, nem mesmo linguagem, numa quase pantomima do socorro que não chega ao luxo do desespero. Agora, em A pedra do reino, é o contrário. O sol lá está, acima, reinando, com suas fagulhas e sua luz ameaçadora. Porém, cá embaixo, os homens são inumeráveis, as cenas a que se entregam são cruentas de fato, miraculosas outras. Há emboscadas, há degolas, há assombrações, há reinos, há castelos, há miragens, há figuras que mais pertencem ao sonho que à vigília. E o sertão narrado é tão fértil quanto um mar no qual a vida brotou.

Condenado para pagar pelos crimes da poderosa família, Quaderna, que se diz verdadeiro Rei e Profeta, arruinado, não dispõe de meios para se defender. Apesar de seus méritos de ''Poeta, Astrólogo e Decifrador'', e apesar da nobre estirpe de onde seu sangue provém, ''da Pedra do Reino''. É ele a única testemunha de bárbaros e fantásticos acontecimentos. Ninguém pode depor em seu favor.

Suassuna levou doze anos escrevendo o livro. Nesta 5ª edição (é pouco, comercialmente falando, para tal proeza literária em tanto tempo de circulação) o texto foi alterado, passagens cortadas, outras acrescidas, outras reescritas. O que não mudou (nem deixou o livro datado, o que é um feito) é a linha do fantástico-maravilhoso a que ele se filia talvez porque nesse caso o autor não tenha seguido nenhum modismo. Seu tema é legítimo e se o fizesse hoje, seria nesse cenário de fantasmagorias e simbolismos que infestam a região tanto geográfica quanto histórica que o artista estuda e reproduz.

Eis a especialidade de Ariano Suassuna, traduzir, não a si mesmo nem a suas obsessões, vício de muitos cabotinos que julgam sua arte a de todos, mas o contrário, traduzir a arte de todos para si mesmo, com tal ordem e riqueza que põe a si mesmo nela e os põe em seu universo particular, realizando o difícil, quase impossível, encontro entre artista rigoroso e gente comum do povo. Alinha os temas, as imagens, classifica-os, vindo desde a mais remota antiguidade, e sua leis poéticas, até manifestações populares da contemporaneidade.

Iniciação à estética foi nascendo aos poucos, a partir de aulas que Ariano dava a seus alunos da cadeira de Estética no Centro de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Estávamos em 1956 e o professor anotava caprichosamente cada ponto debatido em aula: Platão; Aristóteles; Plotino; Kant; Hegel; as categorias da beleza; arte gratuita e arte participante; ofício, técnica e forma na arte; hierarquia e classificação; e todos os gêneros, da arquitetura, passando pela música, às danças e espetáculos. Isso sem esquecer as naturezas da estética, a filosófica, a empirista, a psicológica, a historicista, a sociológica e a fenomenológica.

Tal conjunto se nos apresenta árido, visto de fora. Porém, síntese afiada e simultaneamente palatável das anotações do professor, que as reuniu durante dezessete anos (a primeira edição saiu em 1973), Iniciação à estética é mais que uma iniciação. Um curso completo e único no gênero feito por um escritor-pensador do naipe de Suassuna. Aliás, podemos chamá-lo de autor? Devido a seus esforços incalculáveis para recivilizar-nos com nosso próprio passado e considerando que ele transita entre a ficção, a comediografia (Auto da Compadecida, 1955) e o ensaísmo, Ariano Suassuna, mais que representar uma cultura, constitui-se nela.