Título: O fracasso das negociações multilaterais
Autor: Silber, Simão Davi
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2008, Economia, p. E2

Inaugurou-se em 29 de julho de 2008 uma nova etapa do relacionamento comercial entre as nações: pela primeira vez desde a instituição do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT em inglês) em 1947, não se consegue avançar em um acordo mínimo de liberalização comercial mundial. As oito rodadas anteriores haviam sido bem sucedidas, reduzindo drasticamente o protecionismo erigido na primeira metade do século XX e havia a expectativa que a Rodada Doha avançasse na consolidação de novas regras de acesso a mercado para produtos agropecuários. Na véspera, as chances de acordo ainda eram palpáveis, quando subitamente houve mudança na proposta da Índia exigindo salvaguardas contra importações de produtos agrícolas em patamares considerados inaceitáveis pelos países exportadores e a negociação foi suspensa. Para se ter idéia do que se perdeu, é apresentada uma breve resenha das propostas que estavam próximas de aprovação: na agricultura existiam dois pontos chaves: 1) redução de subsídios domésticos nos Estados Unidos e União Européia, para os limites de US$ 14,5 bilhões e 24 bilhões de euros ao ano, respectivamente e 2) maior acesso a mercado, via redução de tarifas, da diminuição da lista de produtos sensíveis nos países industrializados e uso limitado da cláusula de salvaguarda nos países em desenvolvimento. No setor industrial, estava acordada uma redução de tarifas nos países desenvolvidos, a um teto de 8% e para os países em desenvolvimento tetos tarifários que variavam entre 20 a 25%, dependendo do coeficiente tarifário escolhido por cada país. Tratava-se de uma proposta minimalista, mas que poderia aumentar o comércio mundial em US$ 100 bilhões e, principalmente manter operante o principio do avanço multilateral do comércio. A grande perda é a de não conseguir avançar em regras de acesso a mercado para o setor agropecuário. Estimativas preliminares indicam que acordo de Doha poderia aumentar as exportações brasileiras de produtos agropecuários em US$ 5 bilhões, ou aproximadamente, 3% adicional de receita de exportação.

Explicações múltiplas

As explicações para o fracasso da Rodada Doha são múltiplas. Em primeiro lugar, o número de sócios da OMC aumentou significativamente. Ante os 23 membros iniciais do GATT, hoje o número de atores é 153. Dadas as regras multilaterais de unanimidade e compromissos definitivos ficou muito difícil fazer um acordo. Basta lembrar que as duas últimas rodadas exigiram sete anos de negociação. É um horizonte de tempo exagerado e que leva a uma segunda conseqüência: as mudanças políticas internas são de ciclo mais curto que sete anos e a representatividade nacional vai mudando ao longo da negociação, dificultando a obtenção de um acordo. Em terceiro lugar, a agenda inicial era muito ambiciosa, tanto é que foi chamados da "Rodada do Desenvolvimento", abrangendo temas como comércio de produtos agrícolas, industriais, serviços propriedade intelectual e ações antidumping. A Rodada Doha só foi iniciada quando os "novos temas" foram retirados da negociação, permanecendo os temas mais tradicionais (velhos temas) sobre tarifas e subsídios de produtos agrícolas e ina partir de 2003 e frente à ameaça da concorrência externa, adotaram postura defensiva radical, exigindo salvaguardas que seriam disparadas para crescimento das importações de 10% ao ano e com alíquotas compensatórias adicionais de 30%. Esse foi o "beijo da morte". As conseqüências do fracasso da Rodada Doha são grandes. As disputas comerciais entre países devem ganhar novas forças imediatamente. Pendências entre países, como o caso do algodão e etanol, envolvendo Brasil e Estados Unidos e bananas, envolvendo Equador e União Européia estarão no mecanismo de solução de controvérsia da OMC já em 2008. Ou seja, coube aos perdedores do acordo multilateral discutir caso a caso pendências sobre acesso não discriminatório de mercado. Foi isso que sobrou. Em segundo lugar, haverá um forte estimulo à proliferação de acordos regionais, erodindo ainda mais as regras não discriminatórias multilaterais.

O Brasil, que havia apostado todas suas fichas na abertura multilateral termina sem nenhum avanço relevante, em termos de acesso a mercados. O país não conseguiu avançar em negociações comerciais no hemisfério americano, com a União Européia e com nenhum player de maior expressão da Ásia. Por outro lado, não existe indicação que o fracasso atual venha comprometer o crescimento do comércio internacional nos próximos anos. Independente das negociações multilaterais, as necessidades das nações de terem acesso ao mercado mundial de acordo com suas vantagens comparativas representam uma força inexorável para a expansão do comércio mundial para as próximas décadas. Sistematicamente, o comércio internacional cresce a uma taxa superior a do crescimento da produção (PIB) mundial. Para se ter uma idéia da tendência de crescimento de longo prazo da exportação e produção mundial pode-se destacar que no período 1950 a 2007, para um crescimento médio do PIB mundial de 3,8% ao ano, a exportação mundial cresceu 6,3% ao ano. Mesmo o Brasil, sem ter avançado em nenhum acordo adicional relevante nessa década viu sua exportação crescer do patamar de US$ 50 bilhões em 1998 para US$ 180 bilhões em 2008. O mundo não vai acabar, mas perdeu um pilar importante de sustentação, que dificilmente será retomado nos próximos anos. Deve-se destacar a mudança de postura da equipe negociadora brasileira ao longo da última semana, desgarrando-se da posição defensiva e intransigente do G-20 e do Mercosul e assumindo uma francamente cooperativa.