Título: A vez e a hora de Doha não tinham chegado
Autor: Azambuja, Marcos Castrioto de
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2008, Economia, p. E3

Mark Twain ao ler, em vida e com saúde, seu obituário disse: "As notícias da minha morte são exageradas..." Assim também as profecias de que a OMC e a Rodada de Doha estão liquidadas e enterradas me parecem pelo menos prematuras e, quase certamente, equivocadas. Minha convicção é a de que a OMC e o multilateralismo que ela expressa sobreviverão ao desapontamento e à frustração que o colapso, nos últimos dias, representou para a opinião pública internacional e para numerosos atores que tinham posto suas esperanças em que as negociações chegariam a bom porto. Há uma quase liturgia que faz com que cada sucessiva rodada sobre o comércio internacional dure bem mais do que se previa inicialmente, entre em colapso uma ou várias vezes ao longo do caminho e que, completada, produza resultados aquém dos esperados o que faz com que cada uma carregue em seu bojo um novo ciclo de negociações que, por sua vez, prometerá muito e produzirá bem menos do que se almejava. Assim tem sido a construção, ao longo das rodadas sucessivas: Tóquio, Kennedy, Uruguai e agora Doha do delicado processo de procurar melhor regular o comércio internacional de bens, serviços e as complexidades da questão da propriedade intelectual. Doha nasce em 2001 com as esperanças do novo milênio, com o trauma do 11 de Setembro e a esperança de que a agricultura até então negligenciada seria, por fim, o objeto de uma atenção prioritária em benefício, sobretudo, dos países em desenvolvimento. A rodada, desde o inicio, revelou as imensas complexidades de um mundo agora verdadeiramente multipolar e sem que exista um só bloco que possa exercer ação decisiva. Os Estados Unidos continuaram a ser a superpotência isolada, a União Européia mostrou seu poder e sua resistência a mudanças, a Rússia, a China a Índia e o Brasil foram atores de primeira grandeza e tinham imensos interesses em jogo. Austrália e Canadá ficavam logo atrás e outros grandes atores fizeram sentir o seu peso. A agricultura importa muito esses prejuízos não serão catastróficos ­ ou mesmo excessivamente pesados ­ para o comercio internacional que deverá continuar a crescer embora não, talvez, nos mesmos índices elevados do passado recente. Não quer dizer isso que não seja importante e mesmo urgente pôr de novo o bloco na rua e ir buscar um novo patamar de acomodação entre muitos grandes atores hoje mais lúcidos sobre a natureza e o alcance de seus interesses e mais independentes e vigorosos na defesa de suas posições. Se, por um lado, não vejo um claro perdedor, por outro não identifico ganhadores. Mesmo a China e a Índia que, no fim, fincaram o pé e os Estados Unidos, que já em fase pré-eleitoral, não fez tudo o que dele se esperava, não saem vitoriosos. Todos sabem que terão que retomar as negociações e a prolongada pausa que o colapso produziu terá que ser utilizada para que se encontrem novos esquemas e se proponham trade offs que permitam, na próxima tentativa, fechar com sucesso o jogo interrompido. Embora se fale de novos encontros já logo em setembro uma visão mais realista sugere que haverá que dar tempo para que uma nova administração se instale em Washington e que as lições de agora sejam processsadas e assimiladas por todos pelo que imagino um hiato que talvez nos leve até o segundo semestre de 2009 ou talvez mesmo o começo de 2010. Restará ainda saber se tudo o que até agora já estava alinhavado em Doha resistirá a essa longa pausa ou se será preciso, de uma maneira ou de outra recomeçar tudo da estaca zero. Haverá agora um renovado interesse, diante do insucesso global ­ em procurar os caminhos das negociações bilaterais e dos arranjos regionais. Tudo isso é bom e necessário, mas como o tempo mostrará, não e o bastante pra substituir o insucesso em escala mundial. Talvez ao Brasil se possa fazer a crítica de ter, nos últimos anos, colocado ovos demais na cesta multilateral . Podemos e devemos agora andar mais por caminhos periféricos embora ache que, no essencial, está certa nossa opção preferencial pelo fortalecimento da matriz multilateral. O Brasil não sai mal do exercício. As perdas que podemos sofrer pelo insucesso da rodada não serão grandes e podem ser compensadas. Tivemos atuação de alta visibilidade e nela confirmamos o nosso status como uma grande potência emergente. Porque tínhamos muitas ­ e boas ­ cartas para jogar pudemos ser flexíveis e construtivos. O G-20 ­ nos limites do que podia ­ foi útil e convém não abandoná-lo. Também o foi o Mercosul embora seja leito estreito para a dimensão e diversificação dos interesses brasileiros. O problema é que nas questões fundamentais do comércio mundial o Brasil vai além dos grupos que integra e isso também é verdade sobre os outros grandes negociadores. A pausa que começa não sugere nem recomenda inércia. Em vários e importantes tabuleiros o Brasil deve continuar a jogar e ser pragmaticamente criativo e oportunista. Há muita coisa que devemos fazer para nos tornar mais competitivos e muito isso não depende da OMC ou do destino das negociações globais.