Título: Estamos numa situação catastrófica
Autor: Ricupero, Rubens
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2008, Economia, p. E4

Embaixador alerta para a atual supervalorizaçao do real, que anula conquistas comerciais do país

O embaixador Rubens Ricupero, 71 anos, negociador experiente em missões diplomáticas brasileiras nos anos 80 e 90, acredita que o maior desafio do comércio exterior brasileiro não esta em Genebra, mas bem aqui em solo nacional, na atual política cambial que penaliza fortemente as exportações e pode conduzir o país ao colapso na balança comercial. Além da valorização da moeda americana, Ricupero prevê período de relativa estagnação dos acordos bilaterais do Brasil no âmbito do Mercosul, devido às diferenças entre a pauta brasileira e a de parceiros, especialmente a Argentina.

Como o senhor analisa o fracasso da Rodada Doha?

­ Todos perdem. Índia e China, que bloquearam um avanço em agricultura, vão enfrentar uma atitude geral muito mais difícil em relação às concessões. O Brasil sai perdendo ainda mais, porque com interesse genuíno na agricultura chegou a fazer grande sacrifício para viabilizar o acordo. A OMC sai bastante enfraquecida, o que não é interesse de ninguém, porque é o único fórum que existe para 153 países. O Brasil nunca teria ganhado o caso do algodão contra os Estados Unidos ou o do açúcar contra a União Européia se não houvesse um sistema do tipo da OMC.

Agora a melhor alternativa é buscar acordos bilaterais? ­

Não acredito muito na exis- tência de boas alternativas nem na multiplicação de acordos bilaterais. Os acordos vão continuar a ser tão difíceis como eram na OMC. Isto varia de país para país, mas no caso do Brasil, cujo interesse maior se concentra na agricultura, o fato de ser na OMC ou bilateral não vai alterar muito. O Brasil não vai conseguir acesso mais fácil para os produtos agrícolas nos mercados da Índia e da China numa negociação bilateral. Também será muito difícil com os Estados Unidos e Europa, com os quais já estávamos negociando sem muito avanço.

Como devem ser os acordos no pós-Doha? ­

A posição brasileira fez com o que o país fosse um pouco credor porque teve uma posição muito favorável, o fracasso não foi por nossa culpa e isto pode levar a alguma possibilidade de acordos estritos, concentrados em determinados produtos. O caso do etanol. Estávamos negociando cotas com a Europa, havia até uma boa perspectiva. Acredito em acordos pontuais, específicos, não grandes acordos, de tipo acordo de comércio, porque aí o Brasil tem uma situação muito difícil por causa do Mercosul. Acordos bilaterais são viá- veis com a proteção da Argentina ao setor industrial? ­ A rigor, pelo Mercosul, acor- dos bilaterais não são viáveis. O Mercosul é uma união aduaneira, algo muito mais ambicioso do que um acordo de livre comércio, porque na união aduaneira exige-se uma tarifa externa comum. O Brasil só poderia negociar junto com Ar gentina, Uruguai, Paraguai, porque todos têm de concordar. Não podemos dar uma concessão aos americanos em matéria eletrônica que não seja acompanhada pelos outros, isso fura a tarifa externa comum.

E como fica esse cenário se a Venezuela passar a integrar o Mercosul?

­ Será pior. Acho que a posição brasileira é incoerente ao defender a inclusão da Venezuela no Mercosul, porque o Brasil sabe muito bem que a Venezuela não concorda com acordos genuínos de liberalização da agricultura.

Acredita que o Brasil vai buscar as negociações com mais ênfase?

­ Os parceiros do Mercosul acompanharem esse desejo de uma abertura e aí o problema maior seria a Argentina por causa da proteção do setor industrial. O que deduzo em relação às declarações e a tendência conciliadora em relação à Venezuela que não vai acontecer grande coisa. O governo deve procurar uma ou outra coisa. Uma cota para etanol é possível. O Brasil já tem cotas de carne na União Européia, mas uma negociação abrangente, com um universo grande de produtos, que nós façamos concessões que, por exemplo, a Argentina não faça, eu não vejo isto acontecer.

Qual seria uma boa estra- tégia daqui para a frente?

­ Para o Brasil não há uma solução, vai ter que somar. Por isso, duvido muito da possibilidade de grandes negociações e de acordo de livre-comércio. Não acredito que o Brasil, sobretudo este governo que está no fim, vá romper com o Mercosul.

Doha está sepultada?

­ Doha não está encerrada. O que aconteceu agora não é sem precedente. Na Rodada Uruguai houve um colapso igual, na conferência de Bruxelas, em 1990, que deveria ter terminado a rodada. Chegamos ao fim sem nenhum acordo por causa da agricultura. A Europa não quis fazer concessões, o Brasil e a Argentina e vários outros países latino-americanos não aceitaram que se avançasse em outras áreas. Na época eu era presidente do Conselho do GATT. Fiz conselhos e reduzi a organização para algo perto de sete grupos, escolhemos novos presidentes e, aos poucos, as reuniões começaram de novo. Mas a rodada praticamente não avançou por dois anos. Retomada, até terminou bem alto com nível bem ambicioso de resultados. Agora não sei quanto tempo deve se passar até a próxima. Acredito que antes das eleições americanas e indianas vai ser difícil. Provável algo em 2010, 2011.

Como fica o comércio exterior brasileiro? ­

A curto prazo não muda nada. Os efeitos de Doha só se concretizariam em 2013, 2014.

Como devem se comportar as exportações neste segundo semestre, frente à continuidade da desvalorização do dólar? ­

O câmbio é incomparavel- mente mais importante do que qualquer negociação comercial. Se for desfavorável, como é o nosso, mesmo que se abra oportunidades com as negociações, o câmbio vai impedir de aproveitar as oportunidades porque não dá preço. Para ter êxito com as exportações, um país precisa ter, por ordem de hierarquia: taxa de câmbio ligeiramente desvalorizada, oferta diversificada em produtos e preços e oportunidades abertas pelas negociações. Se não há nem taxa de câmbio, nem oferta pelo câmbio estamos cada vez mais exportando um grupo pequeno de produtos e não há acordo que possa salvar. Estamos numa situação catastrófica em termos de câmbio, a cada dia que passa o desastre se aproxima mais depressa. Para isto, as negociações não ajudam em nada.

Por que o real foi a moeda que mais se valorizou em relação ao dólar? ­

Por duas razões. De um lado, os juros que aqui estão muito altos e atraem capital de fora que vem para ganhos a curto prazo. De outro lado, devido a esta política do Banco Central de estímulo à entrada de recursos, mesmo os especulativos de curto prazo. Assim aumenta a oferta de dólar, que fica mais barato e o real mais caro. Isto está liquidando o comércio exterior brasileiro. O câmbio é o problema mais grave que o país enfrenta.

Como vê os benefícios para o mercado interno? ­

O governo faz com a intenção de segurar a inflação. Mas provocará grande crise nas contas externas e, em algum momento, vai ter um ajuste que vai ser duro. O déficit em conta corrente vai crescer e pode ser que esses capitais que estão entrando se assustem com o tamanho do déficit e comecem a sair, como nos anos 90, antes da crise de 1998.

E como se resolveria isso? ­

Deveria haver controle de capitais. O Brasil deveria promover, com o aumento de impostos, o desestímulo ao ingresso de capitais especulativos de curto prazo. Acho que isto é fácil de fazer porque os instrumentos existem, não dependem de lei. Já que o governo gosta tanto de aumentar imposto, bastaria taxar os capitais especulativos estrangeiros. Mas isto a ortodoxia do Banco Central não permite nem discutir. A solução é esta, taxar fortemente o capital especulativo.

Existe um patamar "ideal" na cotação tanto para ajudar no combate à inflação quanto para não prejudicar demais os exportadores? ­

É impossível citar um número em definitivo. O problema é que o Brasil não usa esta possibilidade. Quem perde mais? ­

O comércio exterior, sobretudo os exportadores. Em geral, os produtos agrícolas que têm remuneração diminuída. A indústria tem impacto mais direto porque já está sofrendo cada vez mais o ingresso do produto chinês ou americano. Em algum momento esta dinâmica vai provocar aumento de desemprego.

Como avalia a política de au- mento da taxa Selic pelo BC? ­

O Banco Central está com a sensação de que está sozinho, que o resto do governo não está fazendo o que devia. De fato, este governo inchou a folha de pagamento, tem dado aumentos muitos grandes, aumentado os gastos correntes. A política monetária tenta segurar a inflação, mas é anulada pela expansão contínua dos gastos do governo e pelo estímulo ao consumo.

A balança sustentada pelas commodities é perigosa?

­ Sim. Não há mal nenhum em ter uma excelente posição competitiva em commodities. Países como Austrália, Japão e Canadá também têm. Mas é preciso que não sejam só commodities, que elas alavanquem setores com maior valor agregado, sobretudo a indústria. Por causa do câmbio, o Brasil caminha para uma situação na qual sua competitividade depende de um número cada vez menor de produtos. E, a longo prazo, nem as commodities aguentam este câmbio.