Título: As incertezas recomendam cautela
Autor: Belluzzo, Luiz Gonzaga
Fonte: Jornal do Brasil, 03/08/2008, Economia, p. E5

Entre 2003 e 2007 a economia brasileira empreendeu uma respeitável redução de sua vulnerabilidade externa. A balança comercial foi a estrela dessa façanha. Benfazeja, a situação internacional empurrou o superávit na conta de mercadorias para além dos US$ 40 bilhões em 2007. A elevação dos preços das commodities e os diferenciais de juros, numa conjuntura de rendimentos modestos, ensejaram, simultaneamente, a ampliação do saldo comercial, o rápido crescimento das importações, acumulação de reservas de US$ 200 bilhões e a valorização do real. Esses resultados animaram alguns analistas a clamar pela entronização do país na categoria de investment grade. As agências de risco responderam aos reclamos dos bra- sileiros e reconheceram as façanhas do emergente sul-americano. É recomendável, porém, cautela e modéstia quando o ambiente internacional transita de uma conjuntura excepcionalmente favorável para outra em que prevalece a incerteza. A euforia provoca o descuido. A valorização do real é uma armadilha. No começo, a cana é doce: o dinheiro externo entra fácil atraído pelo diferencial de juros e pelas expectativas de ulterior valorização da moeda local. O dólar abundante trata de desempenhar o papel que lhe emprestaram. No primeiro ato, escorrega, reduz o saldo na balança comercial e, na conta corrente, dá corda à remessa de lucros e dividendos. No segundo, exige, atemorizado, que lhe paguem mais juros para permanecer no país. Desde os anos 80, o Brasil marcou passo no que se refere à sua pauta de exportações, concentrando as receitas nos produtos cujas vendas crescem menos quando a demanda externa aumenta (commodities agrícolas e industriais) e, além disso, as exportações de manufaturados tornaram-se mais dependentes dos preços do que das quantidades. Desgraçadamente, as últimas cifras da balança comercial revelam que muitos setores industriais (borracha e plásticos, máquinas, produtos de metal, química, eletrônica, têxtil e vestuário) apresentam déficits crescentes em suas transações com o exterior. No primeiro semestre, a indústria brasileira, em seu conjunto, apresentou um déficit de US$ 18 bilhões. O superávit comercial declina. A "virada" do balanço de transações correntes será tão mais rápida quanto maior a velocidade da contração da economia mundial, com "ajustamento" de preços das commodities. O choque inflacionário que meses atrás sacudiu o planeta, bem como sua generalização promovida pelo aquecimento da demanda doméstica, deu impulso a uma nova rodada de elevação dos os juros básicos ­ já bastante parrudos ­ e revigorou a valorização da moeda nacional. É legítimo debater se o Banco Central atuou de forma tempestiva ou se tomou decisão precipitada. A resposta não é simples: depende do julgamento a respeito da intensidade da contração global e das políticas monetárias anticíclicas nos países centrais e seus efeitos sobre os preços de energia e de alimentos. As experiências mais bem-sucedidas na era da globalização parecem indicar que a defesa da taxa de câmbio real, os superávits em conta corrente e a acumulação de reservas elevadas tornaram-se cruciais num mundo de grande mobilidade de capitais. As reservas elevadas garantem o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte. Assim, asseguram a estabilidade da taxa de câmbio e facilitam o controle da inflaçãocom taxas de juros menos danosas para o crescimento. São complexas as relações entre as políticas cambial, monetária e fiscal, engendradas nos países emergentes que promoveram a abertura financeira nos anos 90. No Brasil, entre 1994 e 1997, a entrada líquida de capitais promoveu concomitantemente a valorização do real, a expansão do passivo externo e das reservas cambiais. A esterilização dos efeitos monetários da expansão das reservas foi cometida com juros estratosféricos e déficit fiscal primário, o que levou à explosão da dívida pública interna. Nos idos de 1998, ocorreu o inevitável ataque especulativo. A saída líquida de divisas e a queda das reservas foram acompanhadas da elevação dos juros e "dolarização" do débito público, o que encareceu o serviço da dívida e determinou o rápido crescimento da relação dívida/PIB. É razoável advogar que o Tesouro eleve a poupança fiscal e o Banco Central assuma uma atitude moderada na gestão da política monetária, de modo a permitir, entre outras coisas, um comportamento mais adequado da taxa de câmbio real. Isso reduziria o risco da valorização excessiva da moeda local, prenúncio de uma desvalorização abrupta quando as condições de liquidez internacional se inclinam para a mesquinhez. Na economia brasileira, é alta a sensibilidade dos preços dos bens comercializáveis a choques externos e, ademais, o sistema de preços está contaminado pela indexação das tarifas de serviços públicos. Por isso, as desvalorizações cambiais abruptas ou continuadas são danosas do ponto de vista inflacionário. As valorizações, de outra parte, inibem a formação de expectativas favoráveis ao investimento produtivo, nacional ou estrangeiro, destinado às exportações ou a concorrer com as importações. A relação dívida/PIB acusa imediatamente os efeitos da elevação das taxas de juros, por conta da indexação de uma fração importante dos títulos à Selic. A cobra morde o rabo. A redução da dívida, com juros altos, exige superávits fiscais cada vez mais elevados e o encolhimento relativo, quando não absoluto, do investimento público.