Título: Desnecessário passo para trás
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 04/08/2008, Opinião, p. A8

O que deveria ser um ponto final numa das mais tenebrosas páginas da história recente do país está se transformando numa perigosa interrogação. A Lei da Anistia, promulgada em 28 de agosto de 1979 pelo então presidente João Baptista Figueiredo, começa a ser questionada de forma mais contundente pelo governo federal. Tanto assim que dois de seus ministros ¿ Tarso Genro, da Justiça, e Paulo Vannuchi, da Secretaria de Direitos Humanos ¿ defenderam publicamente, na semana passada, punição aos torturadores da ditadura. Em outras palavras, querem retroceder quase três décadas no tempo e transformar a lei em letra morta.

Principal marco da redemocratização do país, a Lei da Anistia representa um perdão de mão dupla: assim como foram anistiados os que tinham sido punidos por crimes políticos, também foram perdoados os representantes do Estado que haviam cometido qualquer espécie de violência política. Nesse equilíbrio assentaram-se as bases para a reconstrução da democracia brasileira nos anos 80, abrindo caminho para os processos eleitorais, muitos deles disputados (e até vencidos) por aqueles que, outrora, encontravam-se banidos de cidadania.

Estranha-se o fato de que, para a audiência pública na qual compareceram Genro e Vannuchi (promovida pela Comissão de Anistia, sobre o tema Limites e Possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante Estado de Exceção no Brasil), não tenham sido convidados representantes das Forças Armadas ¿ que, com certeza, muito acrescentariam ao debate. "Não são as Forças Armadas que estão em jogo aqui", afirmou o titular da Justiça. "Não é a a postura dos comandantes, dos presidentes ou dos partidos que apoiaram o regime militar. Estamos discutindo o comportamento de um agente público dentro de uma estrutura jurídica", acrescentou, partindo do questionável pressuposto de que os atos de tortura cometidos durante o período militar no Brasil não se classificam como crimes políticos e devem ser punidos pelo Código Penal Brasileiro.

Em verdade, os defensores da revisão da Lei da Anistia afirmam a mesma não foi capaz de solucionar os dois maiores traumas históricos do período: a punição dos torturadores e o esclarecimento do paradeiro daqueles considerados "desaparecidos" pelo regime. Sobre o primeiro ponto, a opção pelo perdão total já demonstrou ser o caminho mais justo ¿ embora não tenha sido seguido por países vizinhos que mergulharam em regimes totalitários à mesma época, como Chile e Argentina, onde os responsáveis por crimes similares foram a julgamento.

Quanto ao desaparecimento de militantes de esquerda, a sociedade cobra esclarecimentos. Não há por que manter em segredo os arquivos oficiais da época da ditadura brasileira, enquanto dezenas de famílias anseiam saber que fim levaram seus filhos e filhas que optaram, naquele momento, por pegar em armas e combater o regime em vigência. Nesse sentido, fariam melhor os ministros se trabalhassem pelo levantamento de todas as barreiras que impedem a solução definitiva dos casos de "desaparecimento" ainda em aberto. Apenas na Guerrilha do Araguaia (entre 1966 a 1975), há relatos de sete militantes mortos, embora o próprio Ministério da Justiça contabilize 61 óbitos. Ainda sem corpos a sepultar.

O perigoso caminho da retaliação, que ora se apresenta, deve ser preterido. Mas com os arquivos abertos, o Brasil poderá reconciliar-se com sua História. Sem revanchismos.