Título: Sete anos, nove dias e um fracasso
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Fonte: Jornal do Brasil, 30/07/2008, Editorial, p. A2
O fio que sustentava as esperanças na Rodada Doha rompeu-se ontem com Estados Unidos e Índia puxando em direções opostas. Os nove dias de negociações que se propunham a dirimir sete anos de impasse fracassaram. A ruína das reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC) oferece um certo sabor de derrota ao Brasil. A diplomacia brasileira entendeu, a tempo, que mais valiam os interesses individuais dos países do que a manutenção artificial de um bloco onde o que é caro a uma nação não necessariamente convém a outra. É o caso dos Bric, o conjunto de nações emergentes da qual fazem parte Brasil, Rússia, Índia e China. Os negociadores brasileiros começaram ao lado de indianos e chineses. Assim que a proposta apresentada por Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC, desenhou-se como um horizonte auspicioso, o Itamaraty não hesitou em aceitar o acordo. Contribuiu, assim, para as negociações. A resistência foi assumida por Índia e China. O debate deu lugar à troca de acusações com os EUA e, como se era de esperar, não levou a lugar nenhum.
A fisionomia abatida do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao sair da última rodada das negociações de Doha, confirma a tese de derrota para o Brasil. O mecanismo especial de salvaguardas (MES), usado para evitar que a indústria de um determinado país não sucumbisse a um possível surto de importações, fez com que a Índia não aceitasse nenhum tipo de harmonia. Horas antes, Amorim tinha dito que era preciso assumir riscos para levar as conversas adiante. O Brasil assumiu tais riscos acertadamente. Foi chamado de "traidor" pelo jornal argentino La Nación, já que o país vizinho também discordou da proposta da OMC. Brasília, entretanto, mostrou que teve coragem para assumir posição que poderia render-lhe frutos e abrir um substantivo mercado para seus produtos como a soja e o próprio etanol. Movimentou-se com habilidade ao tornar-se o primeiro país a apoiar a OMC e expor que nem sempre o raciocínio simplista de que o que é bom para os países ricos é necessariamente nefasto para as nações pobres. Foi em frente. Até esbarrar nas premissas intransigentes de Índia, China e EUA. O resultado foi o tropeço no âmbito da OMC.
No domingo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estará em Buenos Aires. O jornal La Nación apressou-se a dizer que a visita não vinha em boa hora. Engano. Será, ao contrário, uma excelente oportunidade de o Brasil mostrar que não houve traição no episódio. A ida de Lula à Argentina, antes de colocar em cheque as relações Sul-Sul, reforça o Mercosul e mostra que há interesses comuns que merecem ser tratados em conjunto, assim como existem peculiaridades que excedem as fronteiras dos países membros do Mercado Comum do Cone Sul.
Da mesma forma, não se poderia esperar que o Brasil se mantivesse ao lado de quem defendesse uma cruzada contra a maior e mais justa liberação do comércio. Na reta final, os algozes talvez tenham sido chineses e indianos, mas é indispensável lembrar que americanos e europeus endureceram o quanto puderam nas negociações ¿ EUA e União Européia, convém lembrar, cederam o mínimo possível nos pontos em que seria essencial uma distensão, aqueles referentes ao protecionismo agrícola. No caso dos emergentes, a realidade dos países é diferente. Se o Brasil é uma grande nação exportadora de commodities, interessa mais a Nova Déli proteger os milhões de pequenos agricultores que vivem de uma subsistência equilibrada no fio de uma navalha.
Embora o clima de pessimismo tenha tomado os corações dos negociadores brasileiros ¿ e de outros países ¿ o fracasso não deve ser visto como a impossibilidade perpétua de um comércio mais livre. O próximo passo do Brasil é trabalhar com o comércio específico de itens importantes da pauta exportadora do país.