Título: Futuro Severino
Autor: Alfredo Sirkis
Fonte: Jornal do Brasil, 23/02/2005, Outras Opiniões, p. A11

O aspecto mais importante da eleição de Severino Cavalcante, herói do baixo clero parlamentar, não foi a sucessão de erros políticos do PT, seu afã de vencer os fisiológicos pelo fisiologismo, a inabilidade ou falta de empatia do seu candidato Luis Eduardo Greenhalgh. Importante não foi a peripécia, em si, mas a questão estrutural: a democracia no Brasil não resistirá mais uma década com o atual sistema de voto proporcional personalizado, partidos fracos, troca-troca frenético e frouxa costura de alianças pelo atendimento de interesses pessoais. Pelo sistema atual, caminhamos para a ingovernabilidade, a pulverização do poder político, a descaracterização do processo eleitoral e a desmoralização da democracia.

O maior erro do PT no Congresso foi ter sacrificado a reforma política no altar de sua deslumbrada realpolitik. Deveria ter priorizado, na primeira fase do governo, ainda em 2003, a reforma política e mobilizado o prestígio presidencial, para viabiliza-la. Preferiu ceder vergonhosamente, calculando tirar vantagens - até certo ponto conseguindo - desse mesmo sistema que costumava criticar na oposição. Agora pagará o preço.

Países culturalmente mais próximos de nós como Portugal e Espanha adotam o sistema proporcional com voto de lista. As negociações para a formação de governo são feitas pelos partidos que têm controle sobre suas bancadas e a maioria parlamentar fica responsável por sua gestão e sobrevivência. As bancadas são eleitas a partir de listas pré-definidas cujo peso eleitoral provém do voto dado ao partido. A infidelidade é coisa rara, os governos têm mais coesão e estabilidade. Não se imagina José Luiz Rodriguez Zapatero barganhando cargos a cada projeto de lei com os partidos aliados do PSOE.

No Brasil vota-se no candidato, o voto de legenda é residual. O sistema eleitoral engendra uma cultura política ferozmente individualista. O maior adversário do candidato é seu companheiro de partido, política ou geograficamente mais próximo. Cada um deve prover financeiramente por sua própria campanha. E elas se tornam mais caras a cada nova eleição. Uma vez eleito, o parlamentar julga (até com uma certa razão) que o mandato lhe pertence e não ao partido. Afinal foi ele quem sozinho buscou recursos, afiou os cotovelos contra seus pares e chegou lá. Muda-se de partido como quem muda de cuecas e a cultura política consagra a idéia de que os partidos são meras ''legendas'', escuderias eleitorais que só servem para viabilizar candidaturas. Atualmente essa cultura perpassa na diagonal todo o leque partidário. Atinge inclusive o PV, ao qual pertenço, desde sua fundação há 19 anos.

No poder, o PT descobriu as delicias - agora surpreende-se com as armadilhas - do fisiologismo, sem saber ainda manipulá-lo com o tirocínio dos velhos caciques. Sacrificou os anéis e os dedos: os princípios, os valores e a competência de governo. Lotear a máquina de estado entre partidos aliados e tendências produz inexoravelmente má governança.

A adoção do voto proporcional por lista partidária ou do voto distrital misto não representaria uma panacéia - mas certamente uma mudança para melhor. Periga morrer gente nas convenções, mas, pelo menos, teríamos campanhas mais baratas, financiamento público, menor influência do poder econômico, maior coesão partidária e responsabilidade, melhor qualidade de representação, mais estabilidade, melhor gestão do aparelho de estado. Rifada a reforma política, o futuro é francamente assustador. Com os custos galopantes das campanhas, a enganação e a hipocrisia que cerca as prestações de contas eleitorais - a esmagadora maioria dos candidatos declara menos de um décimo do que gastou - as reeleições serão cada vez mais asseguradas por fortunas pessoais ou por expedientes extra-políticos. Mais uma ou duas eleições e teremos um Congresso totalmente dominado por lobbies econômicos ou corporativos, grupos religiosos, alguns exploradores da notoriedade desportiva ou midiática e uma número crescente de políticos financiados pelo tráfico e outras atividades criminosas. Os governos serão cada vez mais instáveis e heterogêneos e precisarão, mais e mais, regatear e lotear o aparelho de estado. Na ausência de reforma política, nosso futuro será Severino.