Título: As agruras de um ex-credor internacional
Autor: Freitas Jr., Osmar
Fonte: Jornal do Brasil, 24/08/2008, Economia, p. E4

Autoridades estrangeiras discutem o futuro do FMI que, em crise, perdeu a capacidade de ditar regras a países e hesita em aplicar a própria cartilha em sua estrutura demasiado inchada.

CORRESPONDENTE EM NOVA YORK

As gargalhadas ecoaram das margens do Rio Grande, no Texas, às do Reno, na Alemanha. O motivo da galhofa foi matéria publicada pela revista alemã Der Spiegel, no fim de junho. Sob o título O encolhimento da influência do Federal Reserve dos Estados Unidos, o prestigiado semanário noticiava que o Fundo Monetário Internacional (FMI) queria monitorar, não apenas o Banco Central americano, como todas as contas do governo do país. Uma ação equivalente à da mula exigir montaria no cavaleiro. Afinal, os Estados Unidos são os maiores sócios do Fundo, e dão a mais alta contribuição aos combalidíssimos cofres da instituição. Como diria ao JB o ex-candidato republicano às eleições presidências deste ano, Ron Paul:

¿ Além de inconstitucional nos Estados Unidos, este monitoramento seria inócuo. Para que abrir as contas do país para uma instituição falida e irrelevante?.

Ele toca o dedo na ferida aberta no corpo do FMI: qual é a relevância do organismo do acordo de Brentton Woods hoje em dia?

O atual diretor-gerente do Fundo é o francês Dominique Strauss-Kahn, que assumiu o cargo em setembro de 2007. Encontrou em caixa meros US$ 300 bilhões. Um cacife minguado para reservas e linhas de crédito em caso de uma grande crise financeira. A situação era tão grave, que o antecessor, o espanhol Rodrigo de Rato aventara a idéia de venda do lastro de ouro da organização, que continha 103 milhões de onças ¿ o bojo das economias da casa. Recebeu como resposta os rangeres de dentes dos sócios que argumentaram:

¿ O FMI não pode vender o que não é dele. O ouro pertence aos sócios da Instituição ¿ como disse o Secretário do Tesouro americano Henry Paulson Jr.

O jeito para sair da crise, claro, seria a fórmula batida dos alquimistas econômicos do Fundo: austeridade ¿ com grande corte dos gastos, aumento da receita, expansão de países membros para um total agora de 185 votantes e mudança do modus operandi. A instituição serviria mais como consultora econômica, do que banco de empréstimos e ditador de medidas.

Com folha de pagamento para quatro mil funcionários espalhados pelo mundo, o FMI ainda não cumpriu a meta de corte de pessoal, salários e benefícios. Prometia-se a ceifa de 10% nos empregados, o que só ocorreria após outubro, quando se realizará a reunião anual do Fundo. Nem mesmo o cafezinho da sede em Washington foi aguado: continuam sendo consumidas diariamente seis mil xícaras de rubiácea escaldadas.

¿ Não vejo equipes de analistas do fundo viajando de classe econômica nos aviões que os levam em missões pelo mundo ¿ diz Pallab Barendan, economista indiano ligado ao Fundo Monetário.

¿ O problema do FMI não é apenas econômico ¿ diz Raul Prebisch, ex-Secretário Geral da Conferência de Mercado e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas. ¿ A situação financeira poderia ser resolvida. O motivo da crise é estrutural. A desigualdade em tomadas de decisões, o desequilíbrio de poder dentro na direção, a perda de rumo em suas aspirações e propósitos, são os principais motores da irrelevância do Fundo. Isto e, é claro, o passado desastroso na conduta de monitoramento e assessoramento de países como Gana, a Argentina e a Coréia do Sul.

Consenso de Washington

Os exemplos de ruínas econômicas impostas pelo FMI, são inúmeros, penosos e conhecidos. Mas o da Argentina chama atenção especial. O país serviu como garoto propaganda maior da magia da fórmula do Fundo para a América Latina. Era o chamado "Consenso de Washington", um tratamento de choque para economias em desarranjo.

A fórmula é conhecida pelos brasileiros, mas um resumo que caiba num cartão de visitas seria: 1) disciplina fiscal, 2) reorientação dos gastos públicos, 3) reforma tributária, 4) liberalização financeira, 5) taxa de câmbio doméstica unificada, 6) liberalização do comércio, 7) abertura para o financiamento externo direto, 8) privatização, e 9) desregulamentação.

Os argentinos aplicaram essas recomendações. E quebraram em 2002. Deram um calote temporário na instituição, mudaram o rumo, e finalmente pagaram, durante o governo Néstor Kirchner, o que deviam. Naquele ponto o presidente diria sua famosa frase: " Existe vida após o FMI. E ela é boa".

Depois do Consenso de Washington, veio o Consenso da América Latina:

¿ Foi o FMI, o tal consenso e as privatizações quem criaram Hugo Chávez. Lembre-se de que Chávez tentou seu primeiro golpe militar em 1992. Venceu as eleições em 1998 no bojo de uma coligação de esquerda, com aspirações nacionalistas estatistas ¿ diz o representante russo no FMI Aleksei Mozhin. E na esteira de Chávez governos de esquerda nacionalista ocuparam quase todo o restante da América do Sul. Ou seja: o feitiço virou contra os feiticeiros.

Em 2005 o Fundo tinha 80% de seus recursos investidos na América Latina. Dois anos depois, já com os países da região livres da tutela da organização, com dívidas pagas e falando em voz alta nas reuniões, as aplicações do FMI se limitavam a 1% do caixa, algo em torno de US$ 50 milhões: menos do que o prêmio da Megaloto de Nova York na semana passada (US$ 85 milhões).

¿ O mundo evoluiu. O fluxo financeiro corre velozmente na era globalizada. E o FMI não se modernizou. Virou peça obsoleta. Se não derem mais voz aos emergentes, como está se exigindo, vão acabar como as máquinas à vapor: em museus ¿ sentencia ao JB o economista Paul Kane, do Massachusetts Institute of Technology.