Título: A graça da Quaresma e da Páscoa
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 12/02/2005, Outras Opiniões, p. A11

O tempo quaresmal é uma oportunidade para fortalecer a catequese e evangelização

Os dias da Quaresma e a Semana Santa que inclui o Tríduo Pascal são de extraordinária riqueza espiritual e nos preparam, individual e comunitariamente, para alcançar os frutos da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus. Em um mundo tão atribulado, onde reina a violência, escasseia a fraternidade e cresce o esquecimento de Deus, eis que a Igreja nos oferece uma oportunidade de reavivar a paz por uma confissão individual, como o determina o Papa, em recente documento, restabelecendo a disciplina eclesiástica na matéria.

Para o comentário desta semana, tendo em vista a Páscoa do Senhor, escolhi fazer algumas considerações sobre nossa fidelidade ao Magistério eclesiástico. A matéria nos vem do discurso de João Paulo II, pronunciado a 6 de fevereiro de 2004, aos participantes da Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé. Trata do contexto cultural contemporâneo e das verdades que salvam o homem.

Com o Batismo, todo cristão assume um compromisso fundamental, decorrente de sua Fé, a fidelidade ao Magistério da Igreja e obediência aos ensinamentos do Santo Padre. Assim recordou o Papa, em seu discurso orientador: ''O contexto cultural contemporâneo, qualificado tanto por um relativismo difundido, como pela tentação de um pragmatismo fácil, exige, mais do que nunca, o anúncio corajoso das verdades que salvam o homem e de um renovado impulso evangelizador'' (nº 1).

Dada sua importância, as declarações da Comissão da Doutrina da Fé merecem um cordial acolhimento, pois é de sua competência esclarecer determinados aspectos de nossa Fé. Ora, a recepção dessa doutrina sobre pontos contestados, deixa os fiéis ''católicos mais desorientados que informados, pelas reações e interpretações imediatas dos meios de comunicação social'' (nº 3).

Diante de ensinamentos postos em dúvida ou subestimados por correntes de pensamento e ação, aproveitemos o tempo quaresmal como uma oportunidade para fortalecer a formação, catequese e evangelização.

Um aspecto proposto pelo Santo Padre para maior aprofundamento é o valor da lei natural, na base da qual é possível desenvolver um diálogo construtivo com todos os homens de boa vontade e com a sociedade laical. Como em muitos ambientes não se reconhece uma verdade inscrita no coração de cada pessoa, torna-se difícil alicerçar uma base ética comum para toda a humanidade.

Segundo o Concílio Vaticano II, em ''Lumen Gentium'' nº 20, há uma continuidade histórica entre Pedro e os demais Apóstolos com a Igreja atual. ''Assim como permanece o múnus que o Senhor concedeu singularmente a Pedro, primeiro dos Apóstolos, para ser transmitido aos seus sucessores, da mesma forma permaneceu o múnus dos Apóstolos de apascentar a Igreja, o qual deve ser exercido para sempre pela sagrada ordem dos Bispos'' (nº 20). O Concílio, no mesmo documento (nº 14) nos ensina: ''A Igreja peregrina é necessária à salvação simplesmente porque o único Mediador entre Deus e os homens, Cristo, faz-se presente hoje no seu Corpo, que é a Igreja''.

A Carta Encíclica ''Fides et Ratio'' de João Paulo II, sobre ''As relações entre Fé e Razão'' (nº 54), adverte que ''nesse século, o Magistério voltou várias vezes ao mesmo assunto, alertando contra a tentação racionalista. É neste horizonte que se devem colocar intervenções do Papa São Pio X, pondo em relevo que na base do modernismo havia posições filosóficas da linha fenomenalista e imanentista. E não se pode esquecer a importância que teve a rejeição católica da filosofia marxista e do comunismo ateu''. Pio XII, em sua Encíclica ''Humani Generis'', preveniu contra os diversos extravios doutrinários. A Congregação para a Doutrina da Fé ''teve de intervir para sublinhar o perigo que comportava a crítica feita por alguns teólogos da libertação mediante teses e metodologias do marxismo'' (''Libertatis Nuntius'', de 6 de agosto de 1984). João Paulo II adverte ainda contra ''uma expressão, hoje generalizada, desta tendência fideista: o biblicismo, que tende a fazer da Sagrada Escritura ou da exegese o único referencial da verdade. Assim, acaba-se por identificar a Palavra de Deus só com a Sagrada Escritura, anulando, desse modo, a Doutrina da Igreja que o Concílio Ecumênico Vaticano II expressamente reafirmou'' (''Fides et Ratio'', nº 55).

A Quaresma nos convida a um aperfeiçoamento espiritual para receber com maior abundância a graça que brota de Cristo Ressuscitado. E nesta celebração está o alicerce da vida cristã. Meditemos na ordem dada a cada um de nós: ''Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo e ensinai-lhes a cumprir tudo quanto vos mandei'' (Mt 28,18-20). Na Declaração ''Dominus Jesus'', da Congregação para a Doutrina da Fé, aprovada pelo Papa e por ele mandada publicar, há referência, no início, ao mandato pela Igreja recebido e à fidelidade aos deveres religiosos no decorrer dos séculos. No alvorecer do terceiro milênio faz-se ouvir o grito do Apóstolo Paulo sobre o dever missionário de todo batizado: ''Anunciar o Evangelho não é, para mim, um título de glória, é uma obrigação que me foi imposta. Ai de mim se não anunciar o Evangelho!'' (1 Cor 9,16). A Quaresma nos questiona: obedecemos a essa ordem do Senhor? Isto só ocorrerá se formos fiéis ao ensino transmitido pelo Magistério Eclesiástico, a começar pela fidelidade a quem ocupa o lugar de Pedro. Se volto a este assunto, é motivado pelo que ocorreu em várias partes do mundo. Há poucos dias, ouvi de um sacerdote o comentário sobre as confissões comunitárias, o choque entre a determinação do Papa e a realidade em que ele vivia. O povo de Deus, em grande parte, ouve o Sucessor de Pedro e põe em prática suas diretrizes. Restam os que não agem assim. Serei eu um deles? Um exame de consciência nos ajuda a dar uma resposta. A graça da Quaresma e a Páscoa nos ajudem a obedecer a Jesus Cristo e não às doutrinas dos homens.