O GLOBO, n 32.321, 02/02/2022. Política, p. 4

SEM ‘NÓS CONTRA ELES’

Mariana Muniz e André de Souza


Judiciário alerta sobre ataques à democracia

Diante do radicalizado ambiente político brasileiro nos últimos anos, em que as eleições de outubro podem representar novo acirramento, a cúpula do Judiciário marcou posição ontem, deixando claro que não serão aceitas ameaças às instituições. Em duas solenidades que marcaram a retomada dos trabalhos, tanto o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, quanto o presidente do Superior Tribunal Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, manifestaram estar alerta com a segurança do pleito. Os magistrados fizeram questão de repudiar ataques à democracia e defender o respeito aos limites legais.


Barroso se referiu diretamente ao vazamento de dados sigilosos do inquérito da PF sobre um ataque hacker ao TSE, feito pelo presidente Jair Bolsonaro. O ministro alertou que isso pode ajudar “milícias digitais” em ataques contra a Corte.

Pela manhã, Fux tratou do impacto de discursos que trazem o mote “nós contra eles”. Pediu moderação e estabilidade, além de destacar que não há mais espaço para “violência contra as instituições públicas”.

— Este Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, concita os brasileiros para que o ano eleitoral seja marcado pela estabilidade e pela tolerância, porquanto não há mais espaços para ações contra o regime democrático e para violência contra as instituições públicas.

Mais tarde, Barroso criticou Bolsonaro, investigado pela Polícia Federal pelo vazamento de dados do inquérito que apura ataque hacker ao tribunal eleitoral.

— Ninguém fornece informações que possam facilitar ataques, invasões, e outros comportamentos delituosos. Tudo aqui é transparente, mas sem ingenuidades. Sempre lembrando que informações sigilosas que foram fornecidas à Polícia Federal para auxiliar uma investigação foram vazadas pelo próprio presidente da República em redes sociais, divulgando dados que auxiliam milícias digitais e hackers de todo o mundo que queiram invadir nossos equipamentos.

“ATITUDE DELIBERADA"

Em seguida, acrescentou que teve que tomar uma série de providências para reforçar a segurança cibernética.

— Faltam adjetivos para qualificar a atitude deliberada de facilitar a exposição do processo eleitoral brasileiro para ataques criminosos —registrou Barroso.

A divulgação das informações levou o TSE a pedir uma investigação de Bolsonaro, que atualmente está em curso no STF. Na semana passada, o presidente da República faltou ao depoimento marcado para que ele prestasse esclarecimentos sobre o assunto.

Barroso atuou como observador na eleição recém ocorrida em Portugal. Ele elogiou a organização e aproveitou para dar uma indireta a Bolsonaro, que já deu sinais de que pode não aceitar uma derrota na eleição presidencial deste ano.

— Um show de organização e democracia. Debate público de qualidade que não foi dominado pelo ódio e pela desinformação disseminados pelas mídias sociais. Ao contrário do que ocorre em outros países, as mídias sociais em Portugal têm muito menos peso.

Apesar da surpresa, todos aceitaram o resultado surpreendente, com civilidade e respeito aos vencedores, sem acusações infundadas de fraudes, sem grosserias.

Na primeira solenidade, Fux ainda falou sobre a importância da vacinação para acabar com a pandemia, lamentou as mais de 600 mil mortes causadas pelo coronavírus no Brasil e destacou o papel das decisões tomadas pelo Supremo em temas ligados à Covid-19:

—Com efeito, a conjuntura crítica iniciada em 2020 surgiu em um momento de profunda fragmentação social, de indesejável polarização política e cultural, de indiferença entre os diferentes e de déficit de diálogo social.

Inicialmente prevista para ocorrer de forma presencial, a solenidade no STF foi realizada por meio de videoconferência depois que a Corte adotou novas medidas de restrição em razão do aumento de casos de Covid-19 no Distrito Federal. Bolsonaro chegou a confirmar presença, mas depois cancelou sua participação.

No início da sessão, Fux informou que o presidente “enviou seus cumprimentos em uma missiva justificativa”. O vice-presidente, Hamilton Mourão, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PPAL), compareceram à solenidade de forma virtual.

Também participaram virtualmente da cerimônia o procurador-geral da República, Augusto Aras, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, e o ministro da Advocacia-Geral da União, Bruno Bianco. Felipe Santa Cruz, que acaba de deixar a presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), fez um discurso em que destacou a importância das eleições de 2022.

— A resistência às tentativas de submeter essa Corte, calar a democracia e sufocar a liberdade de expressão foi o que nos permitiu chegar até aqui. Talvez seja este o ano mais importante desde 1988 para a nossa democracia. A realização das eleições exigirá vigilância incansável. Nenhum tipo de ameaça ao pleito, a seu resultado e ao eleito, colocará em risco a vontade soberana —disse.