O GLOBO, n 32.321, 02/02/2022. Mundo, p. 17

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Putin acusa Ocidente de usar Ucrânia para conter a Rússia 

Em sua primeira entrevista coletiva desde dezembro, o presidente russo, Vladimir Putin, declarou que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ignorou as propostas feitas por Moscou para a crise na Ucrânia e acusou os EUA de “usarem” Kiev para “conter a Federação Russa”.

Ao lado do premier húngaro, Viktor Órban, que visita Moscou, Putin sugeriu que a eventual entrada ucraniana na aliança militar liderada pelos EUA poderia levar a uma guerra na Crimeia, atacou a política de “portas abertas” da organização e afirmou que Washington, na realidade, “não se importa” com o destino da Ucrânia.

—A tarefa mais importante deles [EUA] é conter o desenvolvimento da Rússia — afirmou Putin. —A Ucrânia é apenas um instrumento para chegar a esse objetivo. Isso pode ser feito de várias formas, como nos levando a um conflito armado e forçando seus aliados na Europa a adotar duras sanções contra nós.

‘DEMANDAS DE SEGURANÇA’ 

Putin centrou seus ataques nas respostas que Moscou recebeu dos EUA e da Otan, na semana passada, às chamadas “demandas de segurança” russas feitas em dezembro. Os dois pontos centrais para o Kremlin são o veto à entrada da Ucrânia na Otan, além da retirada de contingentes da aliança dos países que se tornaram membros após 1997 —pontos considerados “inaceitáveis” para o Ocidente. 

—Estamos analisando cuidadosamente as respostas recebidas em 26 de janeiro, mas já está claro que as principais preocupações russas não foram levadas em consideração —afirmou o presidente.

Putin também mencionou uma possível guerra em torno da Crimeia caso a Ucrânia seja admitida na Otan. A península, que abriga a sede da frota russa no Mar Negro, foi anexada por Moscou em 2014, após um referendo não reconhecido internacionalmente, eo retorno do território ao comando de Kiev se encontra entre as doutrinas de segurança do governo ucraniano.

— A adesão da Ucrânia à Otan criará ameaças militares à Crimeia —afirmou. 

Para ele, o Ocidente desconsidera que um conflito relativo à península não será apenas entre as forças de Moscou e de Kiev, mas sim entre a Rússia e toda a aliança militar, uma referência à política de “um ataque contra um é um ataque contra todos”, presente no Artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte.

Ao lado de Putin na coletiva estava Viktor Órban, um líder próximo ao Kremlin, mas cujo país também integra a União Europeia (UE) e a própria Otan. Orbán anunciou acordos bilionários para o fornecimento de gás natural e vacinas pela Rússia, e chegou a criticar a política de sanções como ferramenta de pressão —ao mesmo tempo, defendeu a diplomacia na atual crise.

—A distância entre o que a Otan e a Rússia querem ainda é enorme, mas acredito ser possível reduzi-la, e talvez possamos chegar a um acordo que garanta a paz e a segurança —declarou o premier húngaro, que é contra o envio de militares da aliança para território ucraniano. —Disse ao presidente Putin que a UE está unida e que não há um líder sequer do bloco que queira um conflito com a Rússia

PREOCUPAÇÕES MÚTUAS

Antes da coletiva em Moscou, os chefes da diplomacia da Rússia, Sergei Lavrov, e dos EUA, Antony Blinken, conversaram por telefone e se mostraram dispostos a discutir “preocupações mútuas de segurança”, mas sem fazer promessas imediatas. 

Segundo o Departamento de Estado, Blinken usou a conversa para reiterar posições já conhecidas dos EUA, como a defesa da integridade territorial da Ucrânia e a política de “portas abertas” da Otan, mas ele questionou a Rússia sobre a permanência das tropas na fronteira ucraniana se, como alega Moscou, não existe a intenção de um ataque.

— Se o presidente Putin não quer iniciar uma guerra ou levar adiante uma mudança de regime, o secretário [Blinken] disse ao chanceler Lavrov que, então, este é o momento de retirar as tropas e o armamento pesado, e iniciar uma discussão que possa melhorar a segurança coletiva europeia — afirmou à AFP uma autoridade do Departamento de Estado, sem se identificar.

O Kremlin, por sua vez, esclareceu que uma carta enviada na segunda-feira a Washington e à Otan não era uma resposta russa aos comentários ocidentais às demandas de segurança, como havia dito a diplomacia americana, mas sim perguntas sobre a ideia da “indivisibilidade da segurança” do Atlântico Norte.

O termo, que tem sido usado pelo governo russo na crise, refere-se ao Protocolo de Istambul, de 1999, firmado pelos 57 países da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), incluindo a Rússia e as potências ocidentais

O documento afirma que cada país é “livre para escolher seus arranjos de segurança, incluindo tratados de aliança”, o que tem sido usado pelos EUA para recusar o veto ao ingresso da Ucrânia na Otan. Ao mesmo tempo, como ressalta a Rússia, ele diz que “cada Estado participante tem igual direito à segurança” e que “os Estados não fortalecerão sua segurança à custa da segurança de outros Estados”. 

A entrevista coletiva em Moscou e a conversa de Blinklen e Lavrov se deram meio à intensificação das atividades diplomáticas, com visitas a Kiev dos primeiros-ministros britânico, Boris Johnson, e polonês, Mateusz Morawiecki.

Boris se encontrou com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e sugeriu que um pacote de sanções econômicas contra a Rússia pode ser adotado “imediatamente” no caso de uma invasão. Os dois e o dirigente polonês falaram ainda da criação de uma aliança de segurança entre os três países, o que é visto como uma forma de aproximar Kiev da Otan.

Ainda ontem, Zelensky firmou um decreto para aumentar em 100 mil o número de militares nas Forças Armadas da Ucrânia, além de elevar salários e benefícios. O aumento do contingente ocorreria em até três anos, e o presidente afirmou que não se trata de uma medida de urgência, mas sim para garantir a paz no futuro. Ao contrário de lideranças no Ocidente, o ucraniano vem evitando adotar um tom alarmista sobre a crise envolvendo a Rússia.