O GLOBO, n 32.321, 02/02/2022. Mundo, p. 18
Acordo com FMI causa crise no governo Fernández
Insatisfeito com ajuste fiscal, filho de Cristina Kirchner deixa liderança na Câmara e torna incerta aprovação de pacto no Congresso
A coalizão peronista que governa a Argentina desde 2019 vive uma nova crise após a renúncia do deputado Máximo Kirchner, filho da vice-presidente Cristina Kirchner, à liderança do governo na Câmara, na noite de segunda-feira.
A decisão deixa clara a insatisfação do kirchnerismo com o princípio de acordo alcançado na sexta entre o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o governo de Alberto Fernández para reestruturar a dívida de US$ 44 bilhões (R$ 232 bilhões) contraída pelo país com o organismo em 2018, no governo de Mauricio Macri. A renúncia causa instabilidade para o governo, que não tem maioria em nenhuma das casas do Congresso.
As divisões internas sobre o acordo, que obriga a Argentina a atingir o equilíbrio fiscal em 2025, complicam ainda mais o debate parlamentar necessário para sua aprovação final, no momento em que o governo precisa de apoio para conduzir uma complexa articulação com a oposição.
Antes de uma viagem prevista para a Rússia e a China ontem à noite, Fernández passou o dia em consultas com o presidente da Câmara, o peronista Sergio Massa, a fim de anunciar o substituto de Máximo rapidamente e tentar conter a extensão da crise. À noite, foi anunciado o nome do deputado Germán Martínez. Cientista político que se define como “peronista e kirchnerista, sem contradição”, ele disse que trabalhará pela aprovação do acordo com o Fundo.
Segundo a imprensa argentina, o presidente tentou demover Máximo, sem sucesso. Mais cedo, Fernández disse que conversou com o filho de Cristina na segunda e que em nenhum momento ele mencionou uma “ruptura” dentro da Frente de Todos, a coalizão governista. O presidente disse que confia no apoio do Congresso ao acordo.
—Tomei [a decisão sobre o acordo com o FMI] e estou convencido de que o fiz preservando a economia argentina, e de que é o melhor acordo que poderia ser alcançado com o Fundo — afirmou o presidente.
Fernández disse que a vice-presidente discorda da decisão do filho, mas ela ainda não se manifestou publicamente. Há um mês, o estilo combativo de Máximo já havia causado problemas ao mandatário, quando um discurso duro na Câmara dos Deputados levou a oposição a se unir para rejeitar o Orçamento de 2022.
MEMÓRIA DO PAI
“Tomei a decisão de não continuar no comando da presidência do bloco de deputados da Frente de Todos. Esta decisão decorre do não compartilhamento da estratégia utilizada e ainda menos dos resultados obtidos na negociação com o FMI, realizada exclusivamente pelo Gabinete econômico e pelo grupo negociador que responde e conta com a absoluta confiança do presidente da nação, a quem nunca deixei de relatar minha visão para não chegar a esse resultado”, começa o comunicado de Máximo divulgado na segunda.
O deputado afirmou que permanecerá “dentro do bloco para facilitar a tarefa do presidente”, mas que “é melhor se afastar [da liderança] para que, assim, ele possa eleger alguém que acredite nesse programa”. Na carta, Máximo afirmou que seu pai, Néstor Kirchner, quando presidente, pagou US$ 9,8 bilhões ao FMI, a totalidade da dívida que o país tinha com o órgão, para desvincular as políticas econômicas de sua supervisão.
Outras vozes proeminentes do kirchnerismo também não se manifestaram. Os membros do governo que pertencem ao grupo La Cámpora, próximo dos Kirchner, como os ministros Wado de Pedro (Interior) ou Juan Cabandié (Meio Ambiente), não comentaram o acordo, alcançado após intensas negociações com os EUA, um dos cinco principais acionistas do FMI.
Em setembro do ano passado, após sofrer uma dura derrota legislativa, Fernández cedeu à pressão de Cristina e promoveu uma ampla reforma administrativa, trocando seis ministros. A crise foi considerada a mais grave do governo.
A maior insatisfação do kirchnerismo está no ajuste fiscal acordado com o FMI. “Como vejo que estão sempre interessados em despesas, poderiam economizar com economistas caros, pois para fazer o que fazem bastam pessoas que sabem arrochar, prometendo o inferno se não for feito o que querem”, acusou Máximo em sua carta.
POSIÇÃO DE CRISTINA
O acordo assumido implicará uma redução significativa dos gastos públicos, à qual Cristina se opôs em várias ocasiões, por entender que põe em risco o crescimento econômico. O FMI informou que a Argentina concordou em reduzir os subsídios à energia, o que sugere aumentos nas tarifas de eletricidade e gás, quase congeladas desde o início da pandemia. O deputado Leopoldo Moreau, próximo a Cristina, afirmou ontem que tentará alterar o acordo quando ele chegar à Câmara.
Fernández vai à Rússia e à China em busca de investimentos, enquanto os dois países vivem tensões com o Ocidente, em meio à crise com a Ucrânia e ao boicote diplomático dos EUA aos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim. Fernández se reunirá amanhã em Moscou com seu homólogo russo, Vladimir Putin, e no dia seguinte chegará à China, que em 2021 se tornou o primeiro parceiro comercial da Argentina, superando o Brasil. Uma reunião com o presidente Xi Jinping está agendada, e deve ser um dos primeiros encontros que Xi terá com um líder internacional desde o começo da pandemia.