Título: O ouro azul que divide o Oriente Médio
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 20/02/2005, Internacional, p. A9

Divergência sobre uso da água acirra crise humanitária nos territórios palestinos

A sangrenta disputa entre palestinos e israelenses, que há anos divide e incendeia o Oriente Médio, não se dá só por questões territoriais. O verdadeiro butim escorre sob o solo crestado da Terra Santa, alheio às fronteiras políticas ou militares fincadas na superfície: são milhões de litros de água potável, divididos em três grandes aquíferos, que garantem a continuidade da vida na região. O controle dessa reserva estratégica por parte de Israel (que, em tese, detém 83% do volume, embora na prática esse índice pareça maior), seja por acordos diplomáticos como os de Oslo, seja pela ocupação militar, cristalizou o domínio sobre o destino de grande parte da população dos territórios árabes. Mesmo que a eventual instalação de um Estado da Palestina force uma revisão desse status quo , o tempo está correndo contra. Se por um lado as novas fronteiras podem aguardar, por outro a situação humanitária, que piorou a partir de 1967, se agravou como reflexo da falta de investimentos em saneamento, das ações militares que destruíram (às vezes de propósito) as poucas instalações existentes, e da degradação ambiental. Tal combinação gerou um alerta estridente, detalhado em relatório da ONG Care Internacional, obtido pelo JB . A pesquisa desdobra a situação dramática enfrentada na Cisjordânia. A confrontação desses dados com os dois lados acabou revelando, no entanto, relações tão subterrâneas quanto curiosas. Mesmo marcado pela divisão, emergiu dela um diálogo surpreendentemente franco e potencialmente promissor diante do ambiente habitual de intolerância.

Divulgado no início do ano, o estudo da Care englobou cinco comunidades em torno de Jenin que integram o grupo de 200 (do total de 600 nos territórios) sem rede pública instalada: Ya'bad, Kfeiret, Al Khiljan, Burqin e Barta'a. Somada, a população gira em torno de 25.500 pessoas, com indicadores sanitários e sociais bastante deprimidos. A taxa de desemprego, por exemplo, é de 48,6% contra os 32,3% do restante dos territórios. Além disso, 45,5% das casas se valem de água da chuva coletada guardada em cisternas sem limpeza regular e 81,5% compram o líquido no mercado negro. O estudo relata que o produto é entregue, muitas vezes, no mesmo tanque usado para esvaziar fossas sépticas sobrecarregadas (instaladas em 98% das residências).

De acordo com a ONG, o consumo per capita diário nos territórios gira em torno de 60 litros, enquanto o padrão mínimo estabelecido pela Organização Mundial de Saúde é de 100 litros. Em Ya'bad, o consumo mensal é de 27 litros. As doenças relacionadas ao uso de água de poços contaminados por esgoto, segundo o relatório, respondem por 35% dos atendimentos médicos no verão. Nas casas, é comum a descarga do vaso sanitário ser acionada só uma vez por dia. E nas escolas as crianças não usam o banheiro, pelo mesmo motivo. O líquido usado para lavar a louça suja é trocado a cada dois dias, antes de servir para regar pequenas hortas caseiras.

A deterioração da qualidade de vida veio a reboque das medidas impostas pela ocupação. Antes de 1967, o uso e o controle da água se dava a partir da propriedade. Depois, passou para companhias israelenses, que cobram pela distribuição e tratamento sanitário dos dejetos. O governo, também passou a controlar rigidamente a abertura de novos poços e a reabilitação de antigos. Como resultado, segundo a Care, o nível de utilização dos aquíferos por parte dos palestinos permanece o mesmo de antes de 1967. A explosão populacional nos territórios ocupados deu à equação do problema progressão geométrica.

¿ A situação é crítica. A quantidade de água alocada aos palestinos de suas próprias fontes e a disponibilizada pela companhia israelense Mekorot é insuficiente. Não pode passar de 250 milhões de metros cúbicos por ano, quando a demanda já é de mais de 350 milhões ¿ analisa, de Ramala, Ayman Rabi, diretor do Palestinian Hidrology Group, divisão da Autoridade Palestina responsável pelo abastecimento e pela infra-estrutura sanitária. ¿ A área de Jenin vem sofrendo graves reduções de suprimento, especialmente no verão.

A divisão dos uso dos recursos hídricos dos três aquíferos em Israel foi determinada pelos chamados Acordos de Oslo II, em 1995. Por ela, foram estabelecidas proporções de distribuição variáveis, além de cotas mínimas que deveriam ser entregues pelo governo israelense aos palestinos. Segundo as autoridades em Jerusalém, apesar dos sangrentos percalços da Intifada essa parte jamais deixou de ser respeitada, embora o relatório confirme que tanto o volume entregue, quando a freqüência sejam irregulares nas vilas pesquisadas.

¿ Os dois lados concordaram em usar 70 a 80 milhões de metros cúbicos por ano de água nova, com um excedente de 28,6 milhões. Mas há tempos os palestinos vêm recebendo de nós quase o dobro. Especificamente em Jenin, a demanda supera o determinado. A questão é que havia o compromisso de evitar a poluição das fontes e esse não é cumprido. Mais de 200 poços foram feitos ali e isso ameaça o aquífero ¿ responde ao JB, de Jerusalém, Uri Schorr, assessor da Comissão de Águas do Departamento de Infra-estrutura de Israel.

O técnico levanta um ponto não abordado pela Care, que mirou na falta de distribuição e manutenção (por conta do cerco militar) e no colapso administrativo e técnico da área da Autoridade Palestina. Segundo Schorr, parte do problema se deve ao fato de a população árabe se recusar a usar, na agricultura, água de esgoto tratada.

¿ É uma questão cultural, dizem que está contaminada com dejetos humanos. Com isso, o esgoto corre para os rios e se mistura a eles ¿ emenda o israelense.

Confrontado com a informação, Ayman Rabi rejeita categoricamente o argumento, devolvendo a acusação.

¿ Gostaria de saber por que eles não investiram nisso em 30 anos de ocupação. E por que não dão licenças para que os próprios palestinos construam essas estações de tratamento ¿ reage o palestino.

O debate, apesar disso, não é rancoroso. Os dois lados admitem que o canal de diálogo, mesmo nos piores momentos, se manteve aberto nessa área.

¿ Toda a região é carente e parte das redes que eles têm fizemos depois de 1967. Muitas vezes nos pedem que mudemos o balanço do bombeamento em certas cidades e atendemos. Sabemos dos problemas políticos, mas nesse nível técnico sempre houve entendimento ¿ avalia Schorr, minimamente corroborado por Rabi: ¿ É verdade. O contato nunca parou, embora precisemos pedir permissão para tudo, até por que o sistema é pago pelos palestinos também.

Como os novos tempos permitem um horizonte menos desanuviado, há quem imagine uma revisão dos acordos de Oslo com base na proposta original rejeitada por Israel: administração dividida em 50%, com direitos iguais para árabes e judeus dentro daquilo que é de consumo mínimo.

¿ A solução deveria passar por uma política de Direitos Humanos, como é a água, não pela discussão da soberania dos recursos hídricos ¿ define Edward Kaufman, professor das universidades de Maryland e Hebraica, em Jerusalém e especialista em diplomacia alternativa.